domingo, 28 de dezembro de 2014
Cabeça Vazia
Um velho ditado diz "Cabeça vazia é a oficina do Diabo". Não acredite nessa baboseira. A oficina do Diabo na verdade fica no Rio de Janeiro, capital, e é altamente equipada com diversos aparelhos de ar-condicionado de última geração, cruciais para a sobrevivência nesse calor.
quarta-feira, 3 de dezembro de 2014
O Silva
Vinha vindo, pelas ruas chuvosas do Engenho Novo, o Silva.
O Silva era um homem jovem, mas seu rosto magro e encovado, encapado por uma pele pálida macilenta, coberta por uma castanha barba à fazer, fazia com que ele parecesse bem mais velho. Mechas de seu cabelo cobriam o rosto, empapadas pela chuva e pelo suor. Estava triste, o Silva. Era pobre. Há um mês, havia se divorciado. Há uma semana, havia sido demitido de seu emprego. Vivia em uma casa pequena e alugada, e logo o dinheiro para manter-se ali acabaria. Procurara incessavelmente por trabalho em toda a cidade do Rio, mas sua busca havia sido infrutífera.
Rumava à um velho prédio abandonado. O Silva não sabia, mas há pouco tempo atrás, aquela construção abrigara uns dez, onze, jovens encortiçados. Porém eles haviam sido expulsos, pois agora esse prédio seria demolido. Mais específicamente, nessa mesmíssima noite. E era por isso que ele estava ali.
O quarteirão estava fechado para a demolição do prédio. Mas isso não foi o suficiente para impedir o Silva de entrar no local. Haviam supervisores fazendo uma ronda pela área para garantir que ninguém entrasse e se machucasse. Escondido, o Silva pegou uma pedra no chão e lançou-a em uma parede distante de onde ele estava escondido. O supervisor que estava por perto ouviu o barulho da pedra se chocando, e dirigiu-se ao local de onde o barulho havia se manifestado. Isso deu tempo suficiente para o Silva esgueirar-se, pular um cavalete e entrar na velha construção.
O Silva já não era mais um menino, mas tinha uma agilidade digna da de um capitão da areia. Em meio à degraus faltando e buracos no assoalho, chegou no terceiro - e último - andar do prédio. Arrancou uma porta emperrada com o pé de cabra que trazia consigo, e entrou em uma saleta de paredes cobertas de limo. Largou o pé de cabra no chão, e sentou-se, encostado num canto, e chorou. Mas chorou baixo, pois sabia que se alguém o ouvisse, ele seria tirado dali.
Então, olhou para cima, o rosto vermelho e os olhos miúdos e eclipsados de lágrimas. Conseguia vagamente enxergar, entre os pedaços do teto onde faltava cobertura, as estrelas. Por pior que nosso dia esteja sendo, para os outros, ele pode estar sendo apenas mais um dia normal, como qualquer outro. E era nisso que o Silva pensou ao olhar para as estrelas daquela noite embaçada.
Ele ouviu um movimento lá em baixo. Os homens estavam terminando os preparativos para a demolição. Fungou e levantou-se. Tirou o agasalho marrom velho e jogou-o num canto. Estalou os dedos - uma pequena mania que tinha desde pequeno, e uma das poucas coisas prazerosas que lhe haviam restado - e depois esticou os braços. Então, fechou os olhos.
O chão sob seus pés começou a tremer. Sentia pedaços de madeira e concreto caindo por perto, abrindo buracos no piso. Então, um baque em sua cabeça. Não sentiu mais nada.
O Silva acordou, não sabia quanto tempo depois, em uma sala de hospital, deitado em uma maca. Praguejou baixinho. Nem morrer ele conseguia fazer direito. Então percebeu que uma pessoa que não conhecia estava sentada ao lado da maca, o observando.
Era um homem de feições gentis. Assim como o Silva, também tinha uma barba castanha por fazer, e olhos muito escuros, mas seu rosto era corado, apesar de não muito cheio. O cabelo era preso em um rabo de cavalo, e o corpo esguio vestia roupas simples.
- Ah, você acordou. - Disse o homem. - Os médicos estavam duvidando. E eu também. Mas fico feliz que você conseguiu.
- Desculpa, eu, eu... eu acho que não te conheço. - Murmurou o Silva, piscando, os olhos desacostumados com a luz forte da sala.
- Não conhece mesmo. - Admitiu o desconhecido, estendendo a mão. - Meu nome é Eduardo.
O Silva não apertou a mão.
- Olha, eu não quero ser mal-educado, mas... o que você está fazendo no meu leito? - Perguntou ele.
- Eu na verdade tinha vindo aqui visitar minha avó. - Explicou Eduardo. - Há alguns corredores de distância daqui. Mas ela morreu há algumas horas atrás. Eu estava indo embora, quando entreouvi uma conversa entre alguns médicos sobre você. Disseram que não havia ninguém contigo aqui. Então menti: disse que eu era um primo seu, e que queria ver-lo.
Ambos ficaram constrangidos, em silêncio, por alguns segundos.
- Por que? - Perguntou o Silva, enfim.
- Porquê ninguém deve morrer sozinho. - Respondeu Eduardo, sombrio. - Ainda bem que você conseguiu voltar.
- É, eu não acho. - Resmungou o outro, em resposta.
Um médico entrou na sala.
- Ah, excelente! - Disse o médico, com um sorriso. - Está acordado, então.
- Infelizmente. - Ralhou o Silva. - Quanto tempo eu tenho que ficar por aqui até que eu tenha alta?
O médico checou alguma coisa na prancheta que trazia consigo.
- Na verdade, mais algumas horas. Você deu sorte. Está quase sem nenhum arranhão. A única coisa que aconteceu foi escombro, que atingiu sua cabeça, te nocauteando e formando um galo. Depois, você caiu de alguns andares, mas, pelo que consta aqui, uma pilha de entulho amorteceu o impacto. Então, alguns escombros maiores te cobriram, impedindo que você fosse atingido por outras coisas. Se isso não é sorte, não sei qual é o nome.
- Maldição. - Sussurrou o Silva, para si mesmo.
O médico saiu do quarto, e Eduardo o seguiu, acenando em despedida.
Após uma ou duas horas (o Silva era péssimo em medir a passagem do tempo), o Silva foi liberado do hospital. No caminho da saída, não pode deixar de reparar como este estava vazio.
Saiu pela porta da frente, e, para sua surpresa, se deparou Eduardo sentado nos degraus. Aos seus pés, uma embalagem, com seis garrafas de cerveja.
- Ei! - Saudou Eduardo, alegre.
- ...Eles te deixam beber cerveja na escada do hospital? - Perguntou o outro, sentando-se ao lado.
- Normalmente, acho que não é permitido. Mas o movimento está fraco hoje. - Respondeu Eduardo, abrindo uma garrafa. - Você bebe?
- Normalmente, não. Mas depois do que aconteceu comigo, acho que eu beberia até água sanitária. - Disse o Silva, estendendo o braço para tomar a garrafa.
Eduardo abriu outra para si.
- Qual é o seu nome? - Indagou ele, por fim. - Ouvi uma conversa entre os médicos, mas eles foram meio vagos nos detalhes. É Silva, não é?
- Sim. - Afirmou o mesmo. - Lázaro.
- Lázaro Silva. - Repetiu Eduardo, como se gostasse do tom do nome. E deu uma risadinha.
- O que foi? - Perguntou o outro.
Eduardo deu um gole demorado.
- Você já leu a bíblia?
- Não. - Admitiu o Silva.
- Achei engraçado quando você falou o seu nome, pois tinha um Lázaro na bíblia.
- Bom, tem um monte de nomes na bíblia.
- Realmente. Mas acho que nenhum que tenha traçado um paralelo tão interessante. Uma coincidência, eu diria.
- O que?
- O médico disse que você foi achado entre os escombros de um prédio que havia sido demolido, certo?
- Sim.
- Você não deveria estar lá.
- Não mesmo. Eu havia ido para me suicidar.
- E é por isso mesmo que eu acho tão interessante esse paralelo. Na bíblia, Lázaro voltou dos mortos.
O Silva deu um gole e limpou a boca com as costas da mão.
- Você tá inventando isso.
- Não estou. - Respondeu o outro.
- Olha, quem é você, afinal?
Eduardo estendeu a mão.
- Que tal um amigo?
O Silva olhou o sujeito de cima a baixo. Então, apertou sua mão.
- Que seja. Você me conheceu num período muito estranho da minha vida.
- Bem, vamos mudar isso.
- Você sabe de alguém que tenha um emprego? Se eu atrasar mais um mês de aluguel acho que o proprietário da minha casa corta fora minha cabeça.
- Onde você mora?
- Na rua Matacavalos.
- Então, eu conheço esse cara que trabalha no necrotério. Eles estão precisando de um faxineiro pro período da tarde.
O Silva fez cara feia.
- Faxineiro?
- Eles pagam bem. - Garantiu Eduardo
- ...me passa o telefone desse seu amigo, por favor. - Disse o Silva, por fim.
- Pode deixar.
Eles olharam para um pátio, que ficava do outro lado da rua. Nele, crianças brincavam alegremente, sem saber do que o amanhã lhes reservava.
Era um homem de feições gentis. Assim como o Silva, também tinha uma barba castanha por fazer, e olhos muito escuros, mas seu rosto era corado, apesar de não muito cheio. O cabelo era preso em um rabo de cavalo, e o corpo esguio vestia roupas simples.
- Ah, você acordou. - Disse o homem. - Os médicos estavam duvidando. E eu também. Mas fico feliz que você conseguiu.
- Desculpa, eu, eu... eu acho que não te conheço. - Murmurou o Silva, piscando, os olhos desacostumados com a luz forte da sala.
- Não conhece mesmo. - Admitiu o desconhecido, estendendo a mão. - Meu nome é Eduardo.
O Silva não apertou a mão.
- Olha, eu não quero ser mal-educado, mas... o que você está fazendo no meu leito? - Perguntou ele.
- Eu na verdade tinha vindo aqui visitar minha avó. - Explicou Eduardo. - Há alguns corredores de distância daqui. Mas ela morreu há algumas horas atrás. Eu estava indo embora, quando entreouvi uma conversa entre alguns médicos sobre você. Disseram que não havia ninguém contigo aqui. Então menti: disse que eu era um primo seu, e que queria ver-lo.
Ambos ficaram constrangidos, em silêncio, por alguns segundos.
- Por que? - Perguntou o Silva, enfim.
- Porquê ninguém deve morrer sozinho. - Respondeu Eduardo, sombrio. - Ainda bem que você conseguiu voltar.
- É, eu não acho. - Resmungou o outro, em resposta.
Um médico entrou na sala.
- Ah, excelente! - Disse o médico, com um sorriso. - Está acordado, então.
- Infelizmente. - Ralhou o Silva. - Quanto tempo eu tenho que ficar por aqui até que eu tenha alta?
O médico checou alguma coisa na prancheta que trazia consigo.
- Na verdade, mais algumas horas. Você deu sorte. Está quase sem nenhum arranhão. A única coisa que aconteceu foi escombro, que atingiu sua cabeça, te nocauteando e formando um galo. Depois, você caiu de alguns andares, mas, pelo que consta aqui, uma pilha de entulho amorteceu o impacto. Então, alguns escombros maiores te cobriram, impedindo que você fosse atingido por outras coisas. Se isso não é sorte, não sei qual é o nome.
- Maldição. - Sussurrou o Silva, para si mesmo.
O médico saiu do quarto, e Eduardo o seguiu, acenando em despedida.
Após uma ou duas horas (o Silva era péssimo em medir a passagem do tempo), o Silva foi liberado do hospital. No caminho da saída, não pode deixar de reparar como este estava vazio.
Saiu pela porta da frente, e, para sua surpresa, se deparou Eduardo sentado nos degraus. Aos seus pés, uma embalagem, com seis garrafas de cerveja.
- Ei! - Saudou Eduardo, alegre.
- ...Eles te deixam beber cerveja na escada do hospital? - Perguntou o outro, sentando-se ao lado.
- Normalmente, acho que não é permitido. Mas o movimento está fraco hoje. - Respondeu Eduardo, abrindo uma garrafa. - Você bebe?
- Normalmente, não. Mas depois do que aconteceu comigo, acho que eu beberia até água sanitária. - Disse o Silva, estendendo o braço para tomar a garrafa.
Eduardo abriu outra para si.
- Qual é o seu nome? - Indagou ele, por fim. - Ouvi uma conversa entre os médicos, mas eles foram meio vagos nos detalhes. É Silva, não é?
- Sim. - Afirmou o mesmo. - Lázaro.
- Lázaro Silva. - Repetiu Eduardo, como se gostasse do tom do nome. E deu uma risadinha.
- O que foi? - Perguntou o outro.
Eduardo deu um gole demorado.
- Você já leu a bíblia?
- Não. - Admitiu o Silva.
- Achei engraçado quando você falou o seu nome, pois tinha um Lázaro na bíblia.
- Bom, tem um monte de nomes na bíblia.
- Realmente. Mas acho que nenhum que tenha traçado um paralelo tão interessante. Uma coincidência, eu diria.
- O que?
- O médico disse que você foi achado entre os escombros de um prédio que havia sido demolido, certo?
- Sim.
- Você não deveria estar lá.
- Não mesmo. Eu havia ido para me suicidar.
- E é por isso mesmo que eu acho tão interessante esse paralelo. Na bíblia, Lázaro voltou dos mortos.
O Silva deu um gole e limpou a boca com as costas da mão.
- Você tá inventando isso.
- Não estou. - Respondeu o outro.
- Olha, quem é você, afinal?
Eduardo estendeu a mão.
- Que tal um amigo?
O Silva olhou o sujeito de cima a baixo. Então, apertou sua mão.
- Que seja. Você me conheceu num período muito estranho da minha vida.
- Bem, vamos mudar isso.
- Você sabe de alguém que tenha um emprego? Se eu atrasar mais um mês de aluguel acho que o proprietário da minha casa corta fora minha cabeça.
- Onde você mora?
- Na rua Matacavalos.
- Então, eu conheço esse cara que trabalha no necrotério. Eles estão precisando de um faxineiro pro período da tarde.
O Silva fez cara feia.
- Faxineiro?
- Eles pagam bem. - Garantiu Eduardo
- ...me passa o telefone desse seu amigo, por favor. - Disse o Silva, por fim.
- Pode deixar.
Eles olharam para um pátio, que ficava do outro lado da rua. Nele, crianças brincavam alegremente, sem saber do que o amanhã lhes reservava.
segunda-feira, 17 de novembro de 2014
Garis, garis piratas, catadores
Dois jovens de 17 anos conversam em um restaurante.
- Deus, finalmente o ano letivo vai acabar.
- Ah, sim. Não aguento mais.
- Formatura, então?
- Sei não, cara. Tô com merda até o pescoço. Provavelmente vou ficar de recuperação numas quatro matérias.
- Acho que vou ficar numas três ou quatro também.
- Eu não entendo física há uns dois anos. Pra falar a verdade, nem sei como passei ano passado.
- Acho que o professor teve pena de ti.
- Provavelmente o professor teve pena de mim.
- Há quanto tempo estamos na escola?
- Se você fizer a conta... uns dez, onze anos?
- Onze? Não são doze?
- A alfabetização não conta.
- Claro que conta!
- Pelo amor de deus, na alfabetização a gente só colore o mapa no Brasil e aprende a ter uma caligrafia decente.
- Tá, você tem razão.
- Isso não tá certo, cara. Passamos toda nossas vidas encarcerados na escola.
- Não se preocupa com isso, Leo. Depois ainda tem mais uns anos de faculdade, algumas décadas de trabalho, e, quando finalmente tiver uma folga permanente, você vai ser velho demais pra poder aproveitar a vida.
- Wow... meio deprimente, se você parar pra pensar.
- Você acha?
- Eu acho. Por mim eu largava os estudos e ia, sei lá, pintar quadros na praia, ou qualquer uma dessas coisas que lhe dá uma liberdade maior. Mas minha mãe iria me matar.
- É, e você provavelmente estaria com fome e dormindo em uma caixa de papelão na rua após um mês.
- Ugh. Isso é o que eu odeio na escola. É tão essencial. Você não pode fazer nada na vida se não tiver um pedaço de papel dizendo que você sabe fazer bháskara. As vezes a vontade é largar tudo e ir ser gari.
- Você precisa ter ensino médio completo pra ser gari.
- Que?
- É sério.
- Cê acabou de inventar isso.
- Não inventei, não. Pega o celular e procura aí.
- Isso não faz sentido nenhum.
- Por que não faz?
- Pra que eu teria que saber bháskara sendo um gari?!
- Eu não sei. Mas isso é lei.
- Aff. Aposto que essa é uma daquelas leis que ninguém respeita.
- Claro que respeitam. Garis são funcionários públicos. Eles literalmente trabalham pro governo. Não dá pra burlar.
- Sim, mas nem todo gari é registrado.
- Que?
- Você sabe, os garis piratas. Aqueles que passam na praia com sacos de plástico, catando as latinhas na areia.
- Eles não são garis, são catadores.
- "Catador" é só de lixo.
- E o que eles tão fazendo?
- Não deixam de estar catando lixo, mas a nomenclatura é diferente. Você me entende. Catadores são tipo aqueles caras que estão prestando serviços comunitários.
- E o que difere ele de um gari?
- O gari ganha um salário.
- Mas os dois estão fazendo exatamente a mesma coisa. O que não pode se dizer dos caras na praia, que catam somente latas e garrafas.
- Olha, eu me perdi no assunto.
- Deixa pra lá. Olha, tua torta tá chegando.
- Ah, finalmente.
- Nossa, cê vai comer tudo isso de sobremesa?
- Que foi? Tô com fome. Ah, a conta veio junto.
- Vamos rachar?
- Pode ser. Mas deixa eu comer a torta primeiro. Depois vemos isso com calma.
- Deus, finalmente o ano letivo vai acabar.
- Ah, sim. Não aguento mais.
- Formatura, então?
- Sei não, cara. Tô com merda até o pescoço. Provavelmente vou ficar de recuperação numas quatro matérias.
- Acho que vou ficar numas três ou quatro também.
- Eu não entendo física há uns dois anos. Pra falar a verdade, nem sei como passei ano passado.
- Acho que o professor teve pena de ti.
- Provavelmente o professor teve pena de mim.
- Há quanto tempo estamos na escola?
- Se você fizer a conta... uns dez, onze anos?
- Onze? Não são doze?
- A alfabetização não conta.
- Claro que conta!
- Pelo amor de deus, na alfabetização a gente só colore o mapa no Brasil e aprende a ter uma caligrafia decente.
- Tá, você tem razão.
- Isso não tá certo, cara. Passamos toda nossas vidas encarcerados na escola.
- Não se preocupa com isso, Leo. Depois ainda tem mais uns anos de faculdade, algumas décadas de trabalho, e, quando finalmente tiver uma folga permanente, você vai ser velho demais pra poder aproveitar a vida.
- Wow... meio deprimente, se você parar pra pensar.
- Você acha?
- Eu acho. Por mim eu largava os estudos e ia, sei lá, pintar quadros na praia, ou qualquer uma dessas coisas que lhe dá uma liberdade maior. Mas minha mãe iria me matar.
- É, e você provavelmente estaria com fome e dormindo em uma caixa de papelão na rua após um mês.
- Ugh. Isso é o que eu odeio na escola. É tão essencial. Você não pode fazer nada na vida se não tiver um pedaço de papel dizendo que você sabe fazer bháskara. As vezes a vontade é largar tudo e ir ser gari.
- Você precisa ter ensino médio completo pra ser gari.
- Que?
- É sério.
- Cê acabou de inventar isso.
- Não inventei, não. Pega o celular e procura aí.
- Isso não faz sentido nenhum.
- Por que não faz?
- Pra que eu teria que saber bháskara sendo um gari?!
- Eu não sei. Mas isso é lei.
- Aff. Aposto que essa é uma daquelas leis que ninguém respeita.
- Claro que respeitam. Garis são funcionários públicos. Eles literalmente trabalham pro governo. Não dá pra burlar.
- Sim, mas nem todo gari é registrado.
- Que?
- Você sabe, os garis piratas. Aqueles que passam na praia com sacos de plástico, catando as latinhas na areia.
- Eles não são garis, são catadores.
- "Catador" é só de lixo.
- E o que eles tão fazendo?
- Não deixam de estar catando lixo, mas a nomenclatura é diferente. Você me entende. Catadores são tipo aqueles caras que estão prestando serviços comunitários.
- E o que difere ele de um gari?
- O gari ganha um salário.
- Mas os dois estão fazendo exatamente a mesma coisa. O que não pode se dizer dos caras na praia, que catam somente latas e garrafas.
- Olha, eu me perdi no assunto.
- Deixa pra lá. Olha, tua torta tá chegando.
- Ah, finalmente.
- Nossa, cê vai comer tudo isso de sobremesa?
- Que foi? Tô com fome. Ah, a conta veio junto.
- Vamos rachar?
- Pode ser. Mas deixa eu comer a torta primeiro. Depois vemos isso com calma.
quarta-feira, 22 de outubro de 2014
Diário de Bordo
Dia 4
O navio continua vagando. Tem muita neblina e o vento frio corta o caminho do barco sem piedade. O gosto salgado da maré é constante em minha boca, enquanto as gotas espessas de água do mar atingem meu rosto.
Essa embarcação me pareceu estranha desde o começo. Por mais que aparentasse ser um cruzeiro civil, com destino às ilhas caribenhas, eu duvido que tal caminho esteja sequer sendo traçado pelo barco. O convés é estranhamente deserto, e eu não me lembro da última vez que vi alguém andando em qualquer parte do imenso navio. Cruzo-o de ponta a ponta, pelo exterior e pelo interior, e tudo o que ouço, além do barulho de meus passos e do som distante das ondas ricocheteando no casco do barco, é o silêncio macabro.
Dia 12
A vida aqui é assustadora. Todos os dias, de manhã, passo pelo restaurante e a mesa do buffet está impecavelmente arrumada. Assim que termino de comer, todos os alimentos desaparecem. A mesma coisa acontece nos horários de almoço e jantar.
Embarcar nesse cruzeiro fantasma foi a pior decisão que já tomei em minha vida. Já tentei sair, pulando para fora do convés, mas no momento em que atinjo o mar, acordo estranhamente em um cômodo aleatório do barco. Facas e outras armas brancas - ou objetos que servem como estas - também não causam efeito sobre mim. Tudo o que consigo são feridas indolores, que saram rapidamente.
Eu grito inutilmente por ajuda, dia após dia. Vocifero pedidos desesperados de socorro, erguendo meus braços e balançando peças de roupa na chuva, enquanto sou encharcada por ela, os cabelos grudando no rosto. Em circunstâncias normais, eu já teria ficado doente há muito tempo. Mas as coisas aqui acontecem de um jeito estranho. O único modo que encontro de manter minha sanidade é escrever nesse pequeno caderno.
Dia 31
Cada dia que passa, me conformo de que esse navio infernal não ruma para lugar algum. Todos os dias, tudo o que vejo do trajeto percorrido são mais e mais quilômetros de um mar escuro e tempestuoso, com um céu nublado e ventanias constantes, muitas vezes regadas por doses generosas de chuva. Minha teoria é de que morri, e este é meu purgatório. Devo admitir que nunca imaginei que a vida após a morte fosse tão desgraçada assim.
Não me lembro de ter feito nada tão execrável durante minha vida para merecer esse destino. Sempre fui uma pessoa razoavelmente boa. Fui justa em vida. Uma filha dedicada, uma irmã presente e uma aluna exemplar. Era elogiada nos meus empregos. Meus parentes sempre me tratavam com carinho durante o Natal.
O que eu fiz?
Dia 58
Não acredito num deus. Ou, pelo menos, não acreditava. Em cada momento de sofrimento e angústia que passo nesse barco traiçoeiro, sinto que minha teoria de que este é meu inferno é verdadeira. Então, faço aqui, um apelo pessoal. Se algum deus, em sua onisciência e onipresença, sabe que estou aqui, peço legitimamente minhas desculpas.
Sei que fui confusa em vida, e leviana no quesito religioso. Mas faço um apelo. Nem o pior criminoso da humanidade mereceria uma punição como essa. De todas as histórias de maldições que ouvi durante minha vida, nem mesmo o fardo do cruel Tântalo é tão pesado quanto o que carrego nas costas há mais de um mês.
Dia 115
Meu cotidiano é monótono, e eu não aguento mais. Dia após dia, faço uma repetição de ações que levam o nada à lugar algum. Sinto-me presa num eterno ciclo vicioso, sem fim, e tudo isso me dá vontade de morrer. Se estou morta, afinal, tudo o que eu queria é que a vida após a morte não fosse assim.
Talvez eu tenha apenas perdido minha sanidade. Eu não sei muito bem o que é esse navio, mas pode ser muito bem uma alucinação de minha mente sádica e distorcida. Na verdade, nem sei mais o que é. E não me importo.
Pra ser sincera, tudo o que quero é que isso tenha um fim. Não quero continuar nesse navio para toda a eternidade. Espero ansiosamente pelo dia em que ele irá atracar em algum porto bendito. Fantasio a sensação de descer as escadas, e correr pelas ruas da zona portuária da cidade mais próxima. E, sobretudo, voltar para casa. Não sei como, mas quero voltar. Só sei de uma coisa: De barco, não vou.
Dia 200
Cheguei, enfim, na última folha desse caderno.
Devo dizer que foi bom enquanto durou. Durante 200 dias de minha estadia nesse navio fantasma, essa foi a única atividade do dia que eu exercia sem ódio do mundo, e, sobretudo, de mim mesma. Escrever é algo que sempre me veio muito naturalmente, e arrependo-me de, durante minha estadia na Terra, não ter seguido com ela para o lado profissional.
Não sei o que vou fazer com esse caderno depois que eu acabar de escrever a última linha. Talvez eu o jogue no mar. Talvez, após isso, ele reapareça na mesma mesa onde eu o peguei pela primeira vez, com a tinta da caneta borrada pela água, ou totalmente em branco.
O barco continua seguindo seu rumo inalcançável. Posso estar ficando louca - se é que já não estou - mas eu poderia jurar que, hoje mais cedo, vi um tímido raio de sol escapando por uma fresta entre as nuvens carregadas. Não tenho certeza. Se tem uma coisa que aprendi durante este período em alto-mar é que não tenho certeza de absolutamente nada, apenas de uma coisa: o barco continuará navegando, e eu, aparentemente, estou fardada como a tripulante solitária dessa embarcação vazia.
Adeus, caderno. Foi bom enquanto durou.
O navio continua vagando. Tem muita neblina e o vento frio corta o caminho do barco sem piedade. O gosto salgado da maré é constante em minha boca, enquanto as gotas espessas de água do mar atingem meu rosto.
Essa embarcação me pareceu estranha desde o começo. Por mais que aparentasse ser um cruzeiro civil, com destino às ilhas caribenhas, eu duvido que tal caminho esteja sequer sendo traçado pelo barco. O convés é estranhamente deserto, e eu não me lembro da última vez que vi alguém andando em qualquer parte do imenso navio. Cruzo-o de ponta a ponta, pelo exterior e pelo interior, e tudo o que ouço, além do barulho de meus passos e do som distante das ondas ricocheteando no casco do barco, é o silêncio macabro.
Dia 12
A vida aqui é assustadora. Todos os dias, de manhã, passo pelo restaurante e a mesa do buffet está impecavelmente arrumada. Assim que termino de comer, todos os alimentos desaparecem. A mesma coisa acontece nos horários de almoço e jantar.
Embarcar nesse cruzeiro fantasma foi a pior decisão que já tomei em minha vida. Já tentei sair, pulando para fora do convés, mas no momento em que atinjo o mar, acordo estranhamente em um cômodo aleatório do barco. Facas e outras armas brancas - ou objetos que servem como estas - também não causam efeito sobre mim. Tudo o que consigo são feridas indolores, que saram rapidamente.
Eu grito inutilmente por ajuda, dia após dia. Vocifero pedidos desesperados de socorro, erguendo meus braços e balançando peças de roupa na chuva, enquanto sou encharcada por ela, os cabelos grudando no rosto. Em circunstâncias normais, eu já teria ficado doente há muito tempo. Mas as coisas aqui acontecem de um jeito estranho. O único modo que encontro de manter minha sanidade é escrever nesse pequeno caderno.
Dia 31
Cada dia que passa, me conformo de que esse navio infernal não ruma para lugar algum. Todos os dias, tudo o que vejo do trajeto percorrido são mais e mais quilômetros de um mar escuro e tempestuoso, com um céu nublado e ventanias constantes, muitas vezes regadas por doses generosas de chuva. Minha teoria é de que morri, e este é meu purgatório. Devo admitir que nunca imaginei que a vida após a morte fosse tão desgraçada assim.
Não me lembro de ter feito nada tão execrável durante minha vida para merecer esse destino. Sempre fui uma pessoa razoavelmente boa. Fui justa em vida. Uma filha dedicada, uma irmã presente e uma aluna exemplar. Era elogiada nos meus empregos. Meus parentes sempre me tratavam com carinho durante o Natal.
O que eu fiz?
Dia 58
Não acredito num deus. Ou, pelo menos, não acreditava. Em cada momento de sofrimento e angústia que passo nesse barco traiçoeiro, sinto que minha teoria de que este é meu inferno é verdadeira. Então, faço aqui, um apelo pessoal. Se algum deus, em sua onisciência e onipresença, sabe que estou aqui, peço legitimamente minhas desculpas.
Sei que fui confusa em vida, e leviana no quesito religioso. Mas faço um apelo. Nem o pior criminoso da humanidade mereceria uma punição como essa. De todas as histórias de maldições que ouvi durante minha vida, nem mesmo o fardo do cruel Tântalo é tão pesado quanto o que carrego nas costas há mais de um mês.
Dia 115
Meu cotidiano é monótono, e eu não aguento mais. Dia após dia, faço uma repetição de ações que levam o nada à lugar algum. Sinto-me presa num eterno ciclo vicioso, sem fim, e tudo isso me dá vontade de morrer. Se estou morta, afinal, tudo o que eu queria é que a vida após a morte não fosse assim.
Talvez eu tenha apenas perdido minha sanidade. Eu não sei muito bem o que é esse navio, mas pode ser muito bem uma alucinação de minha mente sádica e distorcida. Na verdade, nem sei mais o que é. E não me importo.
Pra ser sincera, tudo o que quero é que isso tenha um fim. Não quero continuar nesse navio para toda a eternidade. Espero ansiosamente pelo dia em que ele irá atracar em algum porto bendito. Fantasio a sensação de descer as escadas, e correr pelas ruas da zona portuária da cidade mais próxima. E, sobretudo, voltar para casa. Não sei como, mas quero voltar. Só sei de uma coisa: De barco, não vou.
Dia 200
Cheguei, enfim, na última folha desse caderno.
Devo dizer que foi bom enquanto durou. Durante 200 dias de minha estadia nesse navio fantasma, essa foi a única atividade do dia que eu exercia sem ódio do mundo, e, sobretudo, de mim mesma. Escrever é algo que sempre me veio muito naturalmente, e arrependo-me de, durante minha estadia na Terra, não ter seguido com ela para o lado profissional.
Não sei o que vou fazer com esse caderno depois que eu acabar de escrever a última linha. Talvez eu o jogue no mar. Talvez, após isso, ele reapareça na mesma mesa onde eu o peguei pela primeira vez, com a tinta da caneta borrada pela água, ou totalmente em branco.
O barco continua seguindo seu rumo inalcançável. Posso estar ficando louca - se é que já não estou - mas eu poderia jurar que, hoje mais cedo, vi um tímido raio de sol escapando por uma fresta entre as nuvens carregadas. Não tenho certeza. Se tem uma coisa que aprendi durante este período em alto-mar é que não tenho certeza de absolutamente nada, apenas de uma coisa: o barco continuará navegando, e eu, aparentemente, estou fardada como a tripulante solitária dessa embarcação vazia.
Adeus, caderno. Foi bom enquanto durou.
domingo, 19 de outubro de 2014
O Velho da Árvore
Em anos de treinamento como escoteiro durante minha infância, e mais um estendido período de expedições e treinamento em bosques e selvas, eu era convencido de que poderia cruzar qualquer caminho selvagem sem ficar impressionado com absolutamente nada. Ledo engano.
Era um belo dia de verão, daqueles em que o sol em pico esquenta a cabeça, fazendo o suor gotejar entre os fios de cabelo, e eu abria meu caminho em meio a uma mata virgem. Sentia os mosquitos avançando em minhas pernas, com o ânimo e a voracidade grandes como os de um homem que há muito está no deserto encontrando um oásis. Em meus braços, cortes provenientes de galhos, espinhos e pedras afiadas que cruzavam meu caminho. Os ombros doloridos de segurar minha mochila e os pés cansados depois da longa empreitada. Mas nada daquilo me abalava, pois eu já havia traçado meu objetivo, e estava determinado em alcançá-lo.
A praia do outro lado era minha meta. Era uma ilha relativamente pequena, do tamanho de um estado modesto de um país de terceiro mundo, e era consideravelmente desconhecida fora da região - caso eu me lembre bem, sequer possuía um nome. Eu estava lá simplesmente por diversão. Desde muito jovem, sempre fui um viciado em adrenalina. Depois de um tempo, montanhas russas e atrações banais já não me eram o suficiente, então, com o dinheiro que me sobrava, ano após ano, eu me metia nessas modestas aventuras em meus períodos de recesso.
Foi quando, de repente, me deparei com uma trilha, o que me causou estranheza. Eu acreditava ser pioneiro em desbravar aquela rota. O caminho rudimentar, simplesmente um espaço aberto entre a vasta gama de plantas, era tímido, mas notável. Alguém já havia estado ali antes. Claro, meus companheiros estavam na praia, me esperando, mas eles haviam chegado lá pelos aeroplanos. Decidi, então, dar ao meu facão um merecido descanso após alguns quilômetros de mato cortado e seguir pela trilha já estabelecida.
Peguei-me surpreso ao ver que, no fim da trilha, havia uma clareira. Vista de fora, a mata da ilha parecia extremamente fechada, e aquilo me embasbacou tanto quanto me agradou. Sentei em uma pedra ligeiramente menos limosa do que as demais e aproveitei para descansar um pouco. Respirei fundo, bebi uma água da garrafa que eu havia trago em minha mochila, amarrei os cadarços, que já estavam frouxos, e fiquei lá por alguns minutos, ouvindo os sons dos pássaros e observando as copas das árvores mais próximas.
Então vi algo surreal. Uma das árvores se destacava das outras, por, evidentemente, ser a maior. Tanto na altura quanto na largura. Em uma certa altura de seu tronco, havia um buraco, e dele, descia uma escada de corda. Entre a escada e o interior da árvore, havia uma pequena extensão vertical de madeira, como um chão, formando uma varanda rudimentar. E nessa varanda, estava uma figura no mínimo inusitada: Um homem aparentemente muito velho, de cabelos e barbas longos e brancos, pele morena e enrugada, sentado em uma cadeira de balanço e fumando um cachimbo.
Era difícil distinguir expressões faciais daquele rosto inédito por trás daquela espessa, mas eu pude sentir que, quando ele observou que eu havia notado sua presença, deu um sorrisinho. Não um sorriso maldoso, ou um sorriso de quem acabou de ouvir uma piada genial. Mas um sorriso travesso, como o que se vê no rosto de uma criança de 5 anos que tocou a campainha do vizinho e saiu correndo até o final da rua. Parecia estar se divertindo com o fato de que um estranho havia descoberto seu refúgio tropical e que levara um leve susto com sua presença inesperada.
- Suba, meu jovem. - Disse ele, com uma voz rouca porém jovial. - Não tenho companhia há anos. Preciso de alguém com quem eu possa colocar o papo em dia.
Eu geralmente não confiaria em velhos misteriosos que moram no meio da florestas e são estranhamente corteses, mas algo na carisma daquela figura me conquistou, e me senti inclinado a obedecer o comando solicitado logo de primeira. Enquanto eu subia pela escada de corda, ele levantou-se e entrou pelo buraco do tronco, sumindo dentro da árvore. Quando terminei a escalada, eu o segui, e me deparei com seu lar.
Dentro da árvore, havia um ambiente precário que, eu logo concluí, funcionava para aquele eremita como uma casa. Um banco de madeira forrado com algumas folhas, em um formato que lembrava uma cama, podia ser visto logo ao lado de um galho atravessado, onde estavam penduradas algumas peças de roupa esfarrapadas. Na outra parede, vindo do exterior, um pedaço de bambu cortado ao meio, com a concavidade virada para cima, trazia água da chuva para um grande recipiente, e, ao lado dele, haviam alguns menores. Também havia um outro buraco ligeiramente inclinado na vertical, o que me dava suspeitas de que, além daquilo, também havia um andar superior.
- Obrigado - Disse à figura hospitaleira, assim que entrei - senhor...
- Roosvelt. - Respondeu ele, me saudando com um vigoroso aperto de mãos.
- Baker. - Apresentei-me, em retribuição.
- Venha, suba. - Convidou ele, indo em direção ao tal buraco inclinado. - Lá em cima é mais apropriado para visitas.
Segui Roosvelt, e então minha teoria do segundo andar provou-se verdade. Não havia muito lá, apenas um rudimentar armário, onde estavam penduricados vários frascos, folhas, ervas e miçangas, e uma mesa, precária, feita de madeira, com duas cadeiras. Sentei-me, e logo o eremita juntou-se a mim, trazendo duas pequenas cuias em mãos, estas preenchidas por um líquido esverdeado.
- Chá. - Explicou ele.
- Grato. - Agradeci, tomando uma das cuias e bebendo de bom grado. Era, de fato, chá, e estava muito bom.
- O que um jovem como você faz num pedaço de terra condenado como esse, meu filho? - Perguntou meu interlocutor.
- Estou só de passagem. - Expliquei. - Sou um explorador.
- Interessante. - Murmurou o eremita.
- Vivo em Lancashire. Mas quase não paro em casa.
- Não gosta de uma vida calma, então?
- Não muito. - Admiti. - Mas tenho meus momentos.
- Ah, eu simplesmente desisti, essa sociedade maluca. A melhor coisa que fiz foi embarcar naquele navio. Lady Vain II, hah! - Zombou Roosvelt. - Frágil como um pedaço de papel. Naufragou há alguns anos atrás, e eu consegui escapar em um bote com mais uns dois. Acabamos remando até essa ilha, e eu moro aqui desde então. Os outros dois, idiotas, morreram rápido. Um teve uma infecção fatal, e o outro, comeu uma planta que não devia.
- Ninguém nunca veio investigar sobre esse naufrágio? - Indaguei.
- Ah, já devem ter vindo. Mas essa ilha é desconhecida pelo mapa. As pessoas devem achar que é inabitada. Ou, pelo menos, por humanos. Além disso, o Lady Vain encalhou longe daqui. Foram uns bons dias de mar até chegarmos na praia. Isso já tem umas boas décadas.
- E você não tem vontade de voltar?
- Sinceramente, não sei se eu conseguiria. Já estou tão acostumado com minha vida pacata aqui, afastado de tudo. Além disso, estou velho. Vivi uma vida boa, e uma velhice excepcional. Mas agora, vamos deixar isso de lado. Me conte algumas novidades do mundo atual.
Então, passamos algum tempo discutindo amenidades. Falamos sobre a lua e os ministros, sobre o clima e os avanços tenológicos da humanidade. O assunto englobou até mesmo viagem no tempo. Por fim, vi que o sol já ia se por, e decidi encerrar minha conversa sem preliminares. Expliquei rapidamente ao divertido eremita de que eu havia há muito marcado com meus amigos de me encontrar com eles na praia e me despedi, agradecendo pelo chá e pela conversa. Ele me agradeceu igualmente, indicando o caminho mais rápido para a praia.
Após alguns minutos, eu já havia chegado ao meu destino. Dei uma última olhada para a orla, com um sorriso, e, quando questionado por meus amigos, expliquei para eles o ocorrido, no formato de anedota. Eles não me acreditaram, e inclusive mencionaram que o naufrágio da Lady Vain não havia deixado sobreviventes. Fiz pouco caso, pois estava tão feliz que não queria me estressar. Partimos naquele final de tarde, impulsionados pelo vento gelado.
Encontrar Roosvelt foi uma honra e um privilégio. De vez em quando pego-me pensando em como ele deve estar agora. Se está bem, ou mesmo vivo. Não visito aquela ilha desde então, mas alguma coisa me diz que não preciso me preocupar com ele. Ele se vira.
Era um belo dia de verão, daqueles em que o sol em pico esquenta a cabeça, fazendo o suor gotejar entre os fios de cabelo, e eu abria meu caminho em meio a uma mata virgem. Sentia os mosquitos avançando em minhas pernas, com o ânimo e a voracidade grandes como os de um homem que há muito está no deserto encontrando um oásis. Em meus braços, cortes provenientes de galhos, espinhos e pedras afiadas que cruzavam meu caminho. Os ombros doloridos de segurar minha mochila e os pés cansados depois da longa empreitada. Mas nada daquilo me abalava, pois eu já havia traçado meu objetivo, e estava determinado em alcançá-lo.
A praia do outro lado era minha meta. Era uma ilha relativamente pequena, do tamanho de um estado modesto de um país de terceiro mundo, e era consideravelmente desconhecida fora da região - caso eu me lembre bem, sequer possuía um nome. Eu estava lá simplesmente por diversão. Desde muito jovem, sempre fui um viciado em adrenalina. Depois de um tempo, montanhas russas e atrações banais já não me eram o suficiente, então, com o dinheiro que me sobrava, ano após ano, eu me metia nessas modestas aventuras em meus períodos de recesso.
Foi quando, de repente, me deparei com uma trilha, o que me causou estranheza. Eu acreditava ser pioneiro em desbravar aquela rota. O caminho rudimentar, simplesmente um espaço aberto entre a vasta gama de plantas, era tímido, mas notável. Alguém já havia estado ali antes. Claro, meus companheiros estavam na praia, me esperando, mas eles haviam chegado lá pelos aeroplanos. Decidi, então, dar ao meu facão um merecido descanso após alguns quilômetros de mato cortado e seguir pela trilha já estabelecida.
Peguei-me surpreso ao ver que, no fim da trilha, havia uma clareira. Vista de fora, a mata da ilha parecia extremamente fechada, e aquilo me embasbacou tanto quanto me agradou. Sentei em uma pedra ligeiramente menos limosa do que as demais e aproveitei para descansar um pouco. Respirei fundo, bebi uma água da garrafa que eu havia trago em minha mochila, amarrei os cadarços, que já estavam frouxos, e fiquei lá por alguns minutos, ouvindo os sons dos pássaros e observando as copas das árvores mais próximas.
Então vi algo surreal. Uma das árvores se destacava das outras, por, evidentemente, ser a maior. Tanto na altura quanto na largura. Em uma certa altura de seu tronco, havia um buraco, e dele, descia uma escada de corda. Entre a escada e o interior da árvore, havia uma pequena extensão vertical de madeira, como um chão, formando uma varanda rudimentar. E nessa varanda, estava uma figura no mínimo inusitada: Um homem aparentemente muito velho, de cabelos e barbas longos e brancos, pele morena e enrugada, sentado em uma cadeira de balanço e fumando um cachimbo.
Era difícil distinguir expressões faciais daquele rosto inédito por trás daquela espessa, mas eu pude sentir que, quando ele observou que eu havia notado sua presença, deu um sorrisinho. Não um sorriso maldoso, ou um sorriso de quem acabou de ouvir uma piada genial. Mas um sorriso travesso, como o que se vê no rosto de uma criança de 5 anos que tocou a campainha do vizinho e saiu correndo até o final da rua. Parecia estar se divertindo com o fato de que um estranho havia descoberto seu refúgio tropical e que levara um leve susto com sua presença inesperada.
- Suba, meu jovem. - Disse ele, com uma voz rouca porém jovial. - Não tenho companhia há anos. Preciso de alguém com quem eu possa colocar o papo em dia.
Eu geralmente não confiaria em velhos misteriosos que moram no meio da florestas e são estranhamente corteses, mas algo na carisma daquela figura me conquistou, e me senti inclinado a obedecer o comando solicitado logo de primeira. Enquanto eu subia pela escada de corda, ele levantou-se e entrou pelo buraco do tronco, sumindo dentro da árvore. Quando terminei a escalada, eu o segui, e me deparei com seu lar.
Dentro da árvore, havia um ambiente precário que, eu logo concluí, funcionava para aquele eremita como uma casa. Um banco de madeira forrado com algumas folhas, em um formato que lembrava uma cama, podia ser visto logo ao lado de um galho atravessado, onde estavam penduradas algumas peças de roupa esfarrapadas. Na outra parede, vindo do exterior, um pedaço de bambu cortado ao meio, com a concavidade virada para cima, trazia água da chuva para um grande recipiente, e, ao lado dele, haviam alguns menores. Também havia um outro buraco ligeiramente inclinado na vertical, o que me dava suspeitas de que, além daquilo, também havia um andar superior.
- Obrigado - Disse à figura hospitaleira, assim que entrei - senhor...
- Roosvelt. - Respondeu ele, me saudando com um vigoroso aperto de mãos.
- Baker. - Apresentei-me, em retribuição.
- Venha, suba. - Convidou ele, indo em direção ao tal buraco inclinado. - Lá em cima é mais apropriado para visitas.
Segui Roosvelt, e então minha teoria do segundo andar provou-se verdade. Não havia muito lá, apenas um rudimentar armário, onde estavam penduricados vários frascos, folhas, ervas e miçangas, e uma mesa, precária, feita de madeira, com duas cadeiras. Sentei-me, e logo o eremita juntou-se a mim, trazendo duas pequenas cuias em mãos, estas preenchidas por um líquido esverdeado.
- Chá. - Explicou ele.
- Grato. - Agradeci, tomando uma das cuias e bebendo de bom grado. Era, de fato, chá, e estava muito bom.
- O que um jovem como você faz num pedaço de terra condenado como esse, meu filho? - Perguntou meu interlocutor.
- Estou só de passagem. - Expliquei. - Sou um explorador.
- Interessante. - Murmurou o eremita.
- Vivo em Lancashire. Mas quase não paro em casa.
- Não gosta de uma vida calma, então?
- Não muito. - Admiti. - Mas tenho meus momentos.
- Ah, eu simplesmente desisti, essa sociedade maluca. A melhor coisa que fiz foi embarcar naquele navio. Lady Vain II, hah! - Zombou Roosvelt. - Frágil como um pedaço de papel. Naufragou há alguns anos atrás, e eu consegui escapar em um bote com mais uns dois. Acabamos remando até essa ilha, e eu moro aqui desde então. Os outros dois, idiotas, morreram rápido. Um teve uma infecção fatal, e o outro, comeu uma planta que não devia.
- Ninguém nunca veio investigar sobre esse naufrágio? - Indaguei.
- Ah, já devem ter vindo. Mas essa ilha é desconhecida pelo mapa. As pessoas devem achar que é inabitada. Ou, pelo menos, por humanos. Além disso, o Lady Vain encalhou longe daqui. Foram uns bons dias de mar até chegarmos na praia. Isso já tem umas boas décadas.
- E você não tem vontade de voltar?
- Sinceramente, não sei se eu conseguiria. Já estou tão acostumado com minha vida pacata aqui, afastado de tudo. Além disso, estou velho. Vivi uma vida boa, e uma velhice excepcional. Mas agora, vamos deixar isso de lado. Me conte algumas novidades do mundo atual.
Então, passamos algum tempo discutindo amenidades. Falamos sobre a lua e os ministros, sobre o clima e os avanços tenológicos da humanidade. O assunto englobou até mesmo viagem no tempo. Por fim, vi que o sol já ia se por, e decidi encerrar minha conversa sem preliminares. Expliquei rapidamente ao divertido eremita de que eu havia há muito marcado com meus amigos de me encontrar com eles na praia e me despedi, agradecendo pelo chá e pela conversa. Ele me agradeceu igualmente, indicando o caminho mais rápido para a praia.
Após alguns minutos, eu já havia chegado ao meu destino. Dei uma última olhada para a orla, com um sorriso, e, quando questionado por meus amigos, expliquei para eles o ocorrido, no formato de anedota. Eles não me acreditaram, e inclusive mencionaram que o naufrágio da Lady Vain não havia deixado sobreviventes. Fiz pouco caso, pois estava tão feliz que não queria me estressar. Partimos naquele final de tarde, impulsionados pelo vento gelado.
Encontrar Roosvelt foi uma honra e um privilégio. De vez em quando pego-me pensando em como ele deve estar agora. Se está bem, ou mesmo vivo. Não visito aquela ilha desde então, mas alguma coisa me diz que não preciso me preocupar com ele. Ele se vira.
sábado, 4 de outubro de 2014
Criaturas estranhas
Escondo-me debaixo da cama, assustado com a situação. Meus pés estão frios como os de um defunto no Polo Sul, descalços, cansados após tanto correrem. O medo faz com que minha respiração fique mais densa, mas ainda assim, tento fazer com que esta seja silenciosa, pois não quero que ele me ache.
Estive fugindo dele por mais ou menos meia-hora. Fui pego de surpresa por sua entrada em minha casa, e, ao ouvir seus gritos, evidentemente percebi que não era uma criatura amigável e muito menos inofensiva.
Antes de entrar debaixo da cama, consegui ter um vislumbre rápido de sua aparência física. Ele era fisicamente muito superior a mim, podendo vencer-me facilmente em uma disputa corpo-a-corpo, ou até me matar, se quisesse. Sua força era demonstrada pela distância que os móveis percorriam após serem golpeados pela criatura.
Vivo sozinho, em uma casa afastada da cidade. Criaturas como esta volta e meia aparecem por aqui, coisas surreais que parecem ter saído de histórias de horror lovecraftianas. Coisas que ninguém acreditaria. Periodicamente sou visitado por esses seres violentos, mas nunca sou corajoso o suficiente para enfrentá-los, o que faz com que eu, que já tenho personalidade reclusa, seja literalmente recluso, me escondendo enquanto espero os visitantes indesejados irem embora.
Eles me visitam desde criança, na época em que morava com meus pais, em uma casa completamente diferente, em outro estado. Naquela época, muitas vezes, conseguiam me pegar. Agrediam meus pais, e, principalmente, me agrediam, fazendo menção em me matar, o que me deixava em prantos. O que me salvava, muitas vezes, era, após que meu fôlego acabasse de tanto chorar, encolher-me, prender a respiração e fingir que eu havia morrido. É impressionante quanto o medo infantil foi-me útil naqueles tempos. Infelizmente, agora, não tenho os mesmos culhões que eu tinha quando pequeno, e esconder-me ao primeiro sinal das criaturas me parece uma opção muito mais agradável.
Depois de adulto, me mudei, na esperança de que os invasores monstruosos fossem exclusividade daquela cidade. Fui para outro estado, o mais longe possível, e nos primeiros dias, tudo corria bem. Porém, depois de algum tempo, eles voltaram a aparecer.
Ouço o invasor bufar, cansado, e bater em algo que, pelo barulho que fez ao se espatifar na parede, soava muito como meu criado mudo. Seus passos pesados se afastam, pouco a pouco, até que finalmente tomo coragem para levantar-me lentamente, como um roedor alerta, e aproximar-me da janela de meu quarto. Olho para baixo e vejo a criatura ir embora, insatisfeita. Seu nariz adunco, olhos atentos como os de uma ave de rapina, e estrutura alta, porém ligeiramente curvada.
Algumas das criaturas são bem antropomórficas, como a que acaba de sair de minha casa, mas outras são tão monstruosas que chega a ser cartunescas. Lembro de uma que apresentava características lupinas, que atacara-me quando eu era bem novo.
Respiro, vitorioso, uma lufada de ar fresco. Sinto-me aliviado por ter conseguido escapar vivo, mas vivo em agonia, pois sei que, mais cedo ou mais tarde, as criaturas voltarão. Elas parecem ir gradativamente ficando mais zangadas, apesar de aparentemente menos vorazes. Fico pensando se mais alguém é ciente da existência desses invasores peculiares, e se pretende fazer alguma coisa em relação aos mesmos. Sei que terei aturar-los por mais uma vasta gama de anos. Mesmo que eu me mude novamente, sinto como se eles fossem me perseguir, para onde quer que eu vá. Mas tenho esperanças. Tenho esperanças, pois, sem elas, eu não poderei viver.
Recomponho-me, tirando a poeira das roupas, enquanto olho para a bagunça ao meu redor. Pondero se a mesma criatura retornará ou não ainda hoje. Eu realmente não sei. Mas sei que será um longo dia.
Estive fugindo dele por mais ou menos meia-hora. Fui pego de surpresa por sua entrada em minha casa, e, ao ouvir seus gritos, evidentemente percebi que não era uma criatura amigável e muito menos inofensiva.
Antes de entrar debaixo da cama, consegui ter um vislumbre rápido de sua aparência física. Ele era fisicamente muito superior a mim, podendo vencer-me facilmente em uma disputa corpo-a-corpo, ou até me matar, se quisesse. Sua força era demonstrada pela distância que os móveis percorriam após serem golpeados pela criatura.
Vivo sozinho, em uma casa afastada da cidade. Criaturas como esta volta e meia aparecem por aqui, coisas surreais que parecem ter saído de histórias de horror lovecraftianas. Coisas que ninguém acreditaria. Periodicamente sou visitado por esses seres violentos, mas nunca sou corajoso o suficiente para enfrentá-los, o que faz com que eu, que já tenho personalidade reclusa, seja literalmente recluso, me escondendo enquanto espero os visitantes indesejados irem embora.
Eles me visitam desde criança, na época em que morava com meus pais, em uma casa completamente diferente, em outro estado. Naquela época, muitas vezes, conseguiam me pegar. Agrediam meus pais, e, principalmente, me agrediam, fazendo menção em me matar, o que me deixava em prantos. O que me salvava, muitas vezes, era, após que meu fôlego acabasse de tanto chorar, encolher-me, prender a respiração e fingir que eu havia morrido. É impressionante quanto o medo infantil foi-me útil naqueles tempos. Infelizmente, agora, não tenho os mesmos culhões que eu tinha quando pequeno, e esconder-me ao primeiro sinal das criaturas me parece uma opção muito mais agradável.
Depois de adulto, me mudei, na esperança de que os invasores monstruosos fossem exclusividade daquela cidade. Fui para outro estado, o mais longe possível, e nos primeiros dias, tudo corria bem. Porém, depois de algum tempo, eles voltaram a aparecer.
Ouço o invasor bufar, cansado, e bater em algo que, pelo barulho que fez ao se espatifar na parede, soava muito como meu criado mudo. Seus passos pesados se afastam, pouco a pouco, até que finalmente tomo coragem para levantar-me lentamente, como um roedor alerta, e aproximar-me da janela de meu quarto. Olho para baixo e vejo a criatura ir embora, insatisfeita. Seu nariz adunco, olhos atentos como os de uma ave de rapina, e estrutura alta, porém ligeiramente curvada.
Algumas das criaturas são bem antropomórficas, como a que acaba de sair de minha casa, mas outras são tão monstruosas que chega a ser cartunescas. Lembro de uma que apresentava características lupinas, que atacara-me quando eu era bem novo.
Respiro, vitorioso, uma lufada de ar fresco. Sinto-me aliviado por ter conseguido escapar vivo, mas vivo em agonia, pois sei que, mais cedo ou mais tarde, as criaturas voltarão. Elas parecem ir gradativamente ficando mais zangadas, apesar de aparentemente menos vorazes. Fico pensando se mais alguém é ciente da existência desses invasores peculiares, e se pretende fazer alguma coisa em relação aos mesmos. Sei que terei aturar-los por mais uma vasta gama de anos. Mesmo que eu me mude novamente, sinto como se eles fossem me perseguir, para onde quer que eu vá. Mas tenho esperanças. Tenho esperanças, pois, sem elas, eu não poderei viver.
Recomponho-me, tirando a poeira das roupas, enquanto olho para a bagunça ao meu redor. Pondero se a mesma criatura retornará ou não ainda hoje. Eu realmente não sei. Mas sei que será um longo dia.
segunda-feira, 29 de setembro de 2014
Eu não sonho com ovelhas
Com agradecimentos ao colega Phillip, pelo maravilhoso conceito do qual eu não bebi da fonte, mas sim mergulhei na mesma.
Peter chegara em casa após um longo dia na cidade. O céu cinzento era hostil, e as ruas também não eram amigáveis. Era uma péssima época para se viver em Los Angeles, com a lenta degradação da Terra.
Ele morava sozinho em um prédio abandonado, e lotado de tranqueiras nos quartos vazios. O prédio era pequeno e ficava em uma zona tão hostil da cidade, que nem os fugitivos se atreviam a encortiçar-se lá. Peter gostava um pouco disso. Ele encontrava um ar de serenidade da solidão. De vez em quando, falava sozinho.
Chegou no apartamento em que morava, a porta destrancada e encostada, como sempre. Tirou o casaco e jogou-o sobre uma cadeira, e chutou suas botas para debaixo da mesma. Andou em direção ao sofá, que estava logo adiante, e esparramou-se nele.
Olhou para o quadro pendurado na parede, ao lado da porta. Era a foto de uma ovelha. Ovelhas de verdade não eram vistas por ele há muito tempo. Ele não entendia o motivo das pessoas terem um deslumbre tão grande por animais de estimação, tendo-os como sonhos de consumo. Ele achava animais toscos e sem graça.
Olhou para o quadro pendurado na parede, ao lado da porta. Era a foto de uma ovelha. Ovelhas de verdade não eram vistas por ele há muito tempo. Ele não entendia o motivo das pessoas terem um deslumbre tão grande por animais de estimação, tendo-os como sonhos de consumo. Ele achava animais toscos e sem graça.
Aquele havia sido o pior dia da vida de Peter. Ele havia feito o infame Teste, para descobrir a verdade sobre si mesmo. Um daqueles malditos caçadores, que se acham tão espertos, executou o teste nele há horas atrás.
Peter não era humano, mas sim um androide. Era pra isso que servia o teste. Com ele, o caçador identificava os androides entre os humanos, e, logo após isso, os executava. E ninguém se importava. As pessoas achavam que androides eram criaturas vazias, sem sentimentos, o que não era verdade. Eles eram criados, sim, com uma mente vazia, mas ao longo de seu período de vida, eventualmente iam desenvolvendo emoções. Mas eles não consideravam isso na hora de puxar o gatilho.
Entretanto, ele havia conseguido fugir. Ele atirou primeiro. Matara o caçador antes que esse o matasse. Depois disso, fugiu. Voltou para casa, e sabia que eles iriam procurá-lo lá. Mas ele não ligava. Na verdade, não queria mais viver. Porém não queria ser morto por um rato armado sujo que lucraria monetariamente com sua morte.
Um novo caçador já estava entrando no prédio para por um fim em Peter. Ele sabia que o caçador estava lá. Podia ouvir seus passos ocos ecoando no piso do prédio.
O caçador, de repente, percebeu como o silêncio do lugar o deixava desconfortável. Foi o último pensamento que lhe passou pela mente antes dele ter sua cabeça separada do corpo por um pedaço de entulho que voou em sua garganta durante a misteriosa e inusitada explosão.
O caçador, de repente, percebeu como o silêncio do lugar o deixava desconfortável. Foi o último pensamento que lhe passou pela mente antes dele ter sua cabeça separada do corpo por um pedaço de entulho que voou em sua garganta durante a misteriosa e inusitada explosão.
quinta-feira, 4 de setembro de 2014
Sobre computadores e a biblioteca de Alexandria
Durante boa parte de minha juventude, interessei-me por contos. Fossem pequenas estórias escritas durante o período vitoriano, fossem trechos atuais publicados em jornais locais, sendo curto o suficiente para eu ler durante viagens de ônibus, já me despertava o interesse. O curioso de contos, porém, é que eles são, estranhamente, como bombons. Apenas um nunca é o suficiente. E isso me levava a recorrer à livros de compilações. Eu certamente mantinha uma preferência por comprar tais livros, e tê-los sempre em minha prateleira para eventuais saudades de textos específicos, porém eu infelizmente não dispunha sempre do orçamento necessário para sustentar esse meu pequeno vício literário, então muitas vezes recorria à biblioteca local.
Estava retornando lá para devolver um livro que continha diversos contos narrando as proezas de Sherlock Holmes, entre eles, dois de meus favoritos - O Intérprete Grego e A Face Amarela. Sendo frequentador assíduo da biblioteca, eu já conhecia bem a pequena variedade de funcionários do lugar - uma mulher de nariz fino e percepção afiada que trajava sempre um impecável paletó azul marinho, uma senhora gentil com olhos lindos e uma personalidade afável, e um rapaz muito magro e pálido, que parecia estar sempre com a cabeça nas nuvens. Porém, para minha surpresa, ao dirigir-me ao balcão, encontrei uma pessoa diferente.
Era uma moça muito jovem, de cabelos loiros presos num coque apertado e olhos muito atentos no computador do balcão. Presumi que havia sido contratada alguns dias antes, pois eu não a havia visto em minha visita anterior. Devo admitir que sou péssimo em interagir com pessoas desconhecidas, mas eu precisaria devolver o livro mais cedo ou mais tarde, e ela não parecia muito apressada em ceder seu posto para algum outro bibliotecário; Então, aproximei-me.
- Boa tarde. - Saudei, em um tom de voz neutro.
- Boa tarde. - Ela respondeu, ainda sem tirar os olhos do monitor, os dedos teclando rapidamente e tornando o barulho das teclas o único ruído audível no ambiente além de nosso tímido diálogo.
Fiquei alguns segundos em silêncio, pensando no que dizer em seguida, quando, de repente, ela parou de digitar e olhou em minha direção.
- Oh. Veio alugar este livro? - Perguntou.
- Devolver. - Corrigi.
- Certo. - Murmurou.
Estendi a mão com o livro e ela o tomou. Pegou então um aparelho que estava ao lado do computador e, com ele, escaneou um código de barras que estava na contracapa.
- Um momento... - Disse, voltando a teclar freneticamente, quando, de repente, parou e franziu o cenho.
Deu alguns cliques impacientes no mouse do computador, até que desistiu, suspirou com um ar zangado e reclinou-se em sua cadeira, levando a mão ao rosto.
- Desculpe por isso. Mas essa máquina execrável - Reclamou, dando uma pancada no estabilizador, que produziu um ruído surdo - não está funcionando direito.
- Não me admira. - Comentei, após um murmúrio bem humorado. - Isso aí é um dinossauro. Frequento essa biblioteca há uns dez anos, e, da primeira vez que vim aqui, esse computador já era obsoleto.
- Preciso me acostumar com essa coisa. - Falou ela. - Eles costumavam ter sistemas operacionais mais rápidos no meu antigo emprego.
- Ah, você vai pegar o jeito. - Encorajei-a. - Tem um rapaz que trabalha aqui que também teve essa mesma dificuldade quando entrou, mas pelo jeito agora já está habituado.
- Sinceramente, não sei como ele consegue.
- Segundo ele, funciona bem no geral. Mas as redes sociais estão bloqueadas.
- Ótimo. - Resmungou, ironicamente, e depois olhou de relance para o monitor e exibiu um ar de surpresa.
- Voltou? - Indaguei, curioso.
- Voltou. - Confirmou ela.
- Vamos tentar de novo? - Perguntei.
Agora já mais bem humorada, ela escaneou novamente o código de barras e voltou para a sua rápida e complexa sequência de datilografia. Após alguns segundos, ocupados por ela com um tamborilar de dedos na mesa, a pequena impressora que se localizava no balcão lançou para fora uma pequena nota fiscal amarelada, que foi recebida por nós dois com sorrisos. O meu era neutro, quase que automático, mas o dela exibia uma alegria genuína de vitória.
A bibliotecária rapidamente alcançou uma caneta esferográfica, e, após girá-la astutamente entre os dedos de sua mão esquerda, assinou dois pedaços da nota com uma rubrica, e entregou-a para mim, para que eu fizesse o mesmo. Após eu fazê-lo, ela cortou a nota em duas com um movimento singular de tesoura, guardou um pedaço em um pequeno arquivo que ficava do outro lado do balcão entregou o outro a mim.
- Obrigado. - Agradeci.
- Não há de que. - Respondeu ela.
Chequei meu relógio de pulso. Eu ainda dispunha de uma vasta gama de tempo em minhas mãos. Então, girei nos calcanhares e virei-me para as fileiras de prateleiras. Encarei-as por alguns segundos, batucando os pés no chão e pensando no que eu faria em seguida. Então, virei-me novamente para o balcão e perguntei para a moça:
- Vocês adicionaram algo novo na sessão de contos ultimamente?
- Para ser sincera, não tenho certeza - Disse ela, erguendo uma sobrancelha. - Trabalho aqui há apenas alguns dias, mas, até onde sei, não.
Suspirei, desapontado.
- Eles não atualizam essa sessão há meses. Já estou relendo meus favoritos desde que me lembro bem e isso realmente está começando a ficar cansativo.
- A variedade realmente não é das maiores - Concordou ela. - Isso aqui não é exatamente a biblioteca de Alexandria.
- É, creio que não. - Murmurei, olhando de relance para as prateleiras. - Os papéis não ficam disponibilizados em rolos encaixotados e eu espero que esse lugar não tenha um final semelhante.
Meu comentário foi recebido com uma gargalhada audível.
- Oh, desculpe. - Murmurou ela. - As vezes eu esqueço que não se deve fazer barulho numa biblioteca.
- Não se preocupe com isso. Esse lugar anda tão deserto, que, tirando os bibliotecários, só me lembro de ter visto três pessoas aqui no último mês. E uma delas sou eu.
- As coisas vão indo mal. As pessoas não alugam mais livros.
- Verdade. Mas não sei se é porquê estão deixando de ler, ou se estão baixando-os por leitores virtuais ou computador.
- Acho que um pouco dos dois. Mas leitores virtuais apresentam tanta ameaça aos livros de papel quanto elevadores apresentam às escadas.
- Justo. - Concordei. - Gosto desse lugar. Tem um ar de serenidade. E segurança. Acho que me afeiçoei muito à esse prédio. Passei a maior parte de minha adolescência aqui, sabe. Deus, esse lugar costumava a abranger uma tremenda barulheira. A bibliotecária mais antiga daqui arrancava os cabelos, indo de mesa em mesa e pedindo para as pessoas fazerem silêncio.
- Quem olha isso agora, nem acredita. - Disse ela.
- É... - Murmurei, pensativo. - Espero que esse lugar não feche tão cedo.
- Provavelmente não irá. É mantido pelo governo, ou algo assim. Eles só fecharão caso precisem de mais dinheiro para "reformar as ruas" ou "ajudar a população".
- Ou comprar um carro novo e reformar um banheiro.
Meu comentário foi respondido por um risinho irônico.
- Bem, obrigado pela ajuda. - Falei, dirigindo-me à porta de saída.
- Volte sempre. - Respondeu ela, olhos novamente focados no computador.
- Eu sempre volto. - Disse, olhando para o teto e tamborilando os dedos na porta por um segundo, antes de sair.
Gosto muito daquela biblioteca. Claro que sua atmosfera não é metade do que foi antigamente, vívida em seus anos dourados, mas há algo reconfortante em saber que existe um lugar sólido e confiável, esperando por você, no mesmo lugar da cidade, todos os dias.
Estava retornando lá para devolver um livro que continha diversos contos narrando as proezas de Sherlock Holmes, entre eles, dois de meus favoritos - O Intérprete Grego e A Face Amarela. Sendo frequentador assíduo da biblioteca, eu já conhecia bem a pequena variedade de funcionários do lugar - uma mulher de nariz fino e percepção afiada que trajava sempre um impecável paletó azul marinho, uma senhora gentil com olhos lindos e uma personalidade afável, e um rapaz muito magro e pálido, que parecia estar sempre com a cabeça nas nuvens. Porém, para minha surpresa, ao dirigir-me ao balcão, encontrei uma pessoa diferente.
Era uma moça muito jovem, de cabelos loiros presos num coque apertado e olhos muito atentos no computador do balcão. Presumi que havia sido contratada alguns dias antes, pois eu não a havia visto em minha visita anterior. Devo admitir que sou péssimo em interagir com pessoas desconhecidas, mas eu precisaria devolver o livro mais cedo ou mais tarde, e ela não parecia muito apressada em ceder seu posto para algum outro bibliotecário; Então, aproximei-me.
- Boa tarde. - Saudei, em um tom de voz neutro.
- Boa tarde. - Ela respondeu, ainda sem tirar os olhos do monitor, os dedos teclando rapidamente e tornando o barulho das teclas o único ruído audível no ambiente além de nosso tímido diálogo.
Fiquei alguns segundos em silêncio, pensando no que dizer em seguida, quando, de repente, ela parou de digitar e olhou em minha direção.
- Oh. Veio alugar este livro? - Perguntou.
- Devolver. - Corrigi.
- Certo. - Murmurou.
Estendi a mão com o livro e ela o tomou. Pegou então um aparelho que estava ao lado do computador e, com ele, escaneou um código de barras que estava na contracapa.
- Um momento... - Disse, voltando a teclar freneticamente, quando, de repente, parou e franziu o cenho.
Deu alguns cliques impacientes no mouse do computador, até que desistiu, suspirou com um ar zangado e reclinou-se em sua cadeira, levando a mão ao rosto.
- Desculpe por isso. Mas essa máquina execrável - Reclamou, dando uma pancada no estabilizador, que produziu um ruído surdo - não está funcionando direito.
- Não me admira. - Comentei, após um murmúrio bem humorado. - Isso aí é um dinossauro. Frequento essa biblioteca há uns dez anos, e, da primeira vez que vim aqui, esse computador já era obsoleto.
- Preciso me acostumar com essa coisa. - Falou ela. - Eles costumavam ter sistemas operacionais mais rápidos no meu antigo emprego.
- Ah, você vai pegar o jeito. - Encorajei-a. - Tem um rapaz que trabalha aqui que também teve essa mesma dificuldade quando entrou, mas pelo jeito agora já está habituado.
- Sinceramente, não sei como ele consegue.
- Segundo ele, funciona bem no geral. Mas as redes sociais estão bloqueadas.
- Ótimo. - Resmungou, ironicamente, e depois olhou de relance para o monitor e exibiu um ar de surpresa.
- Voltou? - Indaguei, curioso.
- Voltou. - Confirmou ela.
- Vamos tentar de novo? - Perguntei.
Agora já mais bem humorada, ela escaneou novamente o código de barras e voltou para a sua rápida e complexa sequência de datilografia. Após alguns segundos, ocupados por ela com um tamborilar de dedos na mesa, a pequena impressora que se localizava no balcão lançou para fora uma pequena nota fiscal amarelada, que foi recebida por nós dois com sorrisos. O meu era neutro, quase que automático, mas o dela exibia uma alegria genuína de vitória.
A bibliotecária rapidamente alcançou uma caneta esferográfica, e, após girá-la astutamente entre os dedos de sua mão esquerda, assinou dois pedaços da nota com uma rubrica, e entregou-a para mim, para que eu fizesse o mesmo. Após eu fazê-lo, ela cortou a nota em duas com um movimento singular de tesoura, guardou um pedaço em um pequeno arquivo que ficava do outro lado do balcão entregou o outro a mim.
- Obrigado. - Agradeci.
- Não há de que. - Respondeu ela.
Chequei meu relógio de pulso. Eu ainda dispunha de uma vasta gama de tempo em minhas mãos. Então, girei nos calcanhares e virei-me para as fileiras de prateleiras. Encarei-as por alguns segundos, batucando os pés no chão e pensando no que eu faria em seguida. Então, virei-me novamente para o balcão e perguntei para a moça:
- Vocês adicionaram algo novo na sessão de contos ultimamente?
- Para ser sincera, não tenho certeza - Disse ela, erguendo uma sobrancelha. - Trabalho aqui há apenas alguns dias, mas, até onde sei, não.
Suspirei, desapontado.
- Eles não atualizam essa sessão há meses. Já estou relendo meus favoritos desde que me lembro bem e isso realmente está começando a ficar cansativo.
- A variedade realmente não é das maiores - Concordou ela. - Isso aqui não é exatamente a biblioteca de Alexandria.
- É, creio que não. - Murmurei, olhando de relance para as prateleiras. - Os papéis não ficam disponibilizados em rolos encaixotados e eu espero que esse lugar não tenha um final semelhante.
Meu comentário foi recebido com uma gargalhada audível.
- Oh, desculpe. - Murmurou ela. - As vezes eu esqueço que não se deve fazer barulho numa biblioteca.
- Não se preocupe com isso. Esse lugar anda tão deserto, que, tirando os bibliotecários, só me lembro de ter visto três pessoas aqui no último mês. E uma delas sou eu.
- As coisas vão indo mal. As pessoas não alugam mais livros.
- Verdade. Mas não sei se é porquê estão deixando de ler, ou se estão baixando-os por leitores virtuais ou computador.
- Acho que um pouco dos dois. Mas leitores virtuais apresentam tanta ameaça aos livros de papel quanto elevadores apresentam às escadas.
- Justo. - Concordei. - Gosto desse lugar. Tem um ar de serenidade. E segurança. Acho que me afeiçoei muito à esse prédio. Passei a maior parte de minha adolescência aqui, sabe. Deus, esse lugar costumava a abranger uma tremenda barulheira. A bibliotecária mais antiga daqui arrancava os cabelos, indo de mesa em mesa e pedindo para as pessoas fazerem silêncio.
- Quem olha isso agora, nem acredita. - Disse ela.
- É... - Murmurei, pensativo. - Espero que esse lugar não feche tão cedo.
- Provavelmente não irá. É mantido pelo governo, ou algo assim. Eles só fecharão caso precisem de mais dinheiro para "reformar as ruas" ou "ajudar a população".
- Ou comprar um carro novo e reformar um banheiro.
Meu comentário foi respondido por um risinho irônico.
- Bem, obrigado pela ajuda. - Falei, dirigindo-me à porta de saída.
- Volte sempre. - Respondeu ela, olhos novamente focados no computador.
- Eu sempre volto. - Disse, olhando para o teto e tamborilando os dedos na porta por um segundo, antes de sair.
Gosto muito daquela biblioteca. Claro que sua atmosfera não é metade do que foi antigamente, vívida em seus anos dourados, mas há algo reconfortante em saber que existe um lugar sólido e confiável, esperando por você, no mesmo lugar da cidade, todos os dias.
domingo, 31 de agosto de 2014
O Relógio Quebrado
Limpava meus óculos na manga do paletó enquanto, mentalmente, eu amaldiçoava os dias frios e as lentes embaçadas que com eles vinham. Olhei para o relógio da parede para ver que horas eram, quando lembrei que ele, há muito, havia parado de funcionar, quando os ponteiros indicavam que o horário era 12:05. Suspirei e enterrei o rosto nas mãos. Rapidamente, alcancei meu bloco de notas e minha caneta, onde anotei, sem floreios, o lembrete: "Relógio novo", logo abaixo de "Leite" e "Arroz" na lista de compras.
Larguei a caneta na mesa e mordi o lábio inferior, olhando novamente para o relógio quebrado. Passei a mão nos cabelos - uma mania minha que aparece sempre que estou nervoso - e levantei da cadeira em que eu estava sentado. Peguei meus óculos da mesa e levantei-os em direção à luz, onde, após olhar minuciosamente para as lentes com o intuito de conferir se estas ainda estavam embaçadas ou marcadas com digitais e sujeira, finalmente coloquei-os em meu rosto.
Peguei a caneta e meu caderno - Não meu caderno de anotações cotidianas, onde escrevo coisas como listas de compras e pequenas crônicas, mas sim o caderno que uso para trabalhar. Abri na página onde eu havia escrito pela última vez e dei uma rápida olhada, daquelas que só os métodos de leitura dinâmica podem oferecer, em meus últimos escritos, antes de fechá-lo e metê-lo debaixo do braço.
Saí pensando se Lewis faria algum progresso naquele dia.
Após algum tempo pensando com meus botões no transporte público e mais um quarto de hora de uma caminhada agradável, finalmente cheguei ao Asilo Mental Lovecraft, onde eu trabalhava analisando a mente de pacientes insanos e tentando consertar-los. Uma função nobre, eu gostava de pensar. Sentia-me como um relojoeiro, ajeitando as engrenagens e fazendo os ponteiros voltarem a funcionar do jeito certo.
O lugar não era muito amigável, e, creio eu, aquilo não fazia bem aos pacientes. Era todo pintado em cores escuras e sóbrias, e a iluminação também não ajudava muito. A maioria dos pacientes conviva em grupo, porém os mais instáveis - ou perigosos - eram mantidos em celas separadas. Este era o caso de Lewis, o paciente específico o qual eu havia sido contratado, meses atrás, para analisar.
- Atrasado. - Bufou o recepcionista, um homem pálido, sisudo e de olhar vazio. Conhecendo-o por certo tempo, eu já sabia que aquela era a ideia dele de um gesto caloroso de boas vindas.
- Boa tarde para você também, Asimov. - Respondi, com um pequeno sorriso, enquanto entrava no bloco das celas, seguido por um segurança alto, de ombros largos, o molho de chaves tilintando em sua cintura. As celas eram seladas com portas reforçadas, aonde, acima do número do paciente estampado, havia uma pequena escotilha, por onde podíamos ver o interior do ambiente.
Andei pelo corredor, o som de meus passos quase inaudível em contraste com a gritaria que vinha de dentro e de fora das celas, até chegar na porta de número vinte e quatro do setor um. O segurança abriu a porta, e fechou-a rapidamente após eu entrar, mas não a trancou. Já estava acostumado a ser observado por ele durante minhas sessões, mas ainda assim, me sentia sozinho com Lewis naquela cela, o que, confesso, me deixava ligeiramente amedrontado.
- Boa tarde, doutor. - Saudou ele, sorrindo. - É tarde? Eu nem sei mais quando é manhã, tarde ou noite quando estou aqui dentro. A única janela dá pra esse corredor mal-iluminado...
- Isso de fato deve ser muito inconveniente. - Falei, sentando-me na cadeira que havia sido previamente posicionada pelo guarda, visando minha visita.
- Você não imagina. - Disse ele, lambendo os cantos da boca. - Eu costumava a dividir as partes do dia pelas refeições que eles me davam, mas eles pararam de me trazer comida há alguns dias atrás por mal comportamento.
Suspirei, com um ar de desaprovação.
- O que você fez dessa vez?
O semblante dele, que parecia sadicamente feliz antes de minha pergunta, agora murchara tristemente. Isso me deixara mais aliviado. Quando feliz, Lewis tinha um rosto assustador. Com sua cabeça grande de queixo fino e cabelos castanhos com avantajadas entradas, seus olhinhos pequenos e profundos, emoldurados por sobrancelhas cheias e arqueadas, ele tinha um ar intimidador. Porém, quando triste ou assustado, parecia extremamente vulnerável. Era ali que eu entrava - aproveitava seus momentos de sensibilidade para extrair informações. Como um apicultor psicológico.
- Eu discuti com Hank. - Respondeu ele.
- Hank? - Repeti, posicionando a caneta e o caderno. - Quem é Hank?
- O grandalhão que fica aí fora, nos observando. - Falou, levantando o olhar para o mesmo.
- O que houve? - Perguntei, temendo sua resposta.
- Eu discuti com ele.
- Sobre...?
- Ele estava andando por aqui com o diretor, e me chamou de maluco. Eu retruquei, dizendo que não era maluco. Então ele caçoou de mim, e eu o xinguei.
- Na frente do diretor?
- Na frente do diretor. - Ele assentiu, olhando pra cima, as rugas da testa enrijecendo. - Ele disse que vou ficar três dias sem comer nem beber nada.
- Três dias? - Repeti, tomando nota.
- Não sei quantos já passaram, mas parece que foi um tempão. Minha boca está seca, doutor. Está rachando. - Reclamou, mordendo os lábios e arrancando a pele deles com os dentes.
- Eles não podem fazer isso contigo. - Falei. - Sua família sabe o que isso está acontecendo? Você pediu para que eles fossem contactados?
- Minha família não liga para mim. - Gritou ele, com olhos lacrimosos. - Eu nem sei onde minha ex-esposa está agora. E minha filha me odeia.
- Não seja assim - Disse eu, tentando reconfortá-lo - Você vai ficar melhor, Lewis. Está fazendo um progresso muito bom desde que começamos essas sessões semanais. Você vai ficar bem.
- Não vou. - Ralhou ele, virando-se em sua cama e olhando para a parede, suas costas apontando para mim. - Eu serei eternamente perturbado por ter sido um prisioneiro dessa porcaria.
- Você não é um prisoneiro. - Corrigi. - É um paciente.
Ele virou-se rapidamente para mim, os olhos esbugalhados saltando das órbitas.
- PACIENTE?! - Repetiu ele, virando sua cabeça para os lados como uma coruja. - Eu estou confinado nessa cela. Não consigo nem ter movimentos livres por causa desse negócio prendendo meus braços. Sou obrigado a tomar diariamente remédios que eu nem sei para que servem. Isso não é um hospital, doutor. É um presídio. A diferença é que, ao invés de criminosos, ele está cheio de loucos.
Eu observava e ouvia, em silêncio.
- Vocês tentam me curar. Mas não há como me curar. Eu posso ser louco, mas não sou idiota. Eu sei como as coisas funcionam. E sei que nunca serei plenamente reconhecido por vocês, "sãos", nesse mundinho maldito. Mas sabe de uma coisa?! Estou bem aqui. Estou MUITO bem. Eu não faço questão de ser aceito nesse planetinha moribundo. Vocês me exilam, achando que eu sou perigoso, quando não veem que não sou eu que mato, abuso, manipulo e desrespeito meus semelhantes, dia após dia. Se isso é ser louco, eu estou muito bem assim.
Hank, o segurança, bateu no vidro da escotilha, apontando para o pulso com o sinal de que a sessão havia acabado. Mais cedo do que de costume, imaginei. Acho que ele deve ter ficado preocupado com a reação de meu paciente.
Levantei-me e respirei fundo, antes de me despedir.
- Adeus, Lewis.
Ele me observou, sombrio.
- Eu não fiz nenhum progresso hoje, nesse seu quesito, fiz?
Olhei em seus olhos por alguns segundos antes de responder.
- Muito pelo contrário.
Virei-me e encontrei Hank abrindo a porta. Ele me acompanhou no caminho para a saída do bloco de celas.
- As coisas estão cada vez mais difícil com Lewis. - Comentou Hank.
- Certamente. - Respondi. - Mas não seja assim tão duro com ele. Volte a trazer-lhe comida. Ele precisa.
Ele resmungou.
- Sabe. - Disse ele - Mesmo um relógio quebrado marca a hora certa duas vezes ao dia. Apesar de ser um maluco, o Lewis fala umas coisas que te deixam pensando de vez em quando.
- Verdade. - Falei, antes de sair e caminhar para pegar o transporte público.
Pensei muito nas palavras de Lewis e de Hank durante minha breve caminhada. "Mesmo um relógio quebrado marca a hora certa duas vezes ao dia". As vezes, acho que Lewis está certo. Foi naquele dia que decidi que eu não poderia mais fazer aquilo. Dei meia-volta, retornei ao Asilo Mental e pedi demissão.
Cheguei em casa aliviado, como se eu fosse o titã Atlas após tirar o peso do mundo dos ombros. Fitei o relógio que marcava 12:05, na parede da cozinha. Larguei o caderno de trabalho sobre a mesa e puxei o caderno de anotações. Risquei "Relógio novo" da lista.
- Boa tarde para você também, Asimov. - Respondi, com um pequeno sorriso, enquanto entrava no bloco das celas, seguido por um segurança alto, de ombros largos, o molho de chaves tilintando em sua cintura. As celas eram seladas com portas reforçadas, aonde, acima do número do paciente estampado, havia uma pequena escotilha, por onde podíamos ver o interior do ambiente.
Andei pelo corredor, o som de meus passos quase inaudível em contraste com a gritaria que vinha de dentro e de fora das celas, até chegar na porta de número vinte e quatro do setor um. O segurança abriu a porta, e fechou-a rapidamente após eu entrar, mas não a trancou. Já estava acostumado a ser observado por ele durante minhas sessões, mas ainda assim, me sentia sozinho com Lewis naquela cela, o que, confesso, me deixava ligeiramente amedrontado.
- Boa tarde, doutor. - Saudou ele, sorrindo. - É tarde? Eu nem sei mais quando é manhã, tarde ou noite quando estou aqui dentro. A única janela dá pra esse corredor mal-iluminado...
- Isso de fato deve ser muito inconveniente. - Falei, sentando-me na cadeira que havia sido previamente posicionada pelo guarda, visando minha visita.
- Você não imagina. - Disse ele, lambendo os cantos da boca. - Eu costumava a dividir as partes do dia pelas refeições que eles me davam, mas eles pararam de me trazer comida há alguns dias atrás por mal comportamento.
Suspirei, com um ar de desaprovação.
- O que você fez dessa vez?
O semblante dele, que parecia sadicamente feliz antes de minha pergunta, agora murchara tristemente. Isso me deixara mais aliviado. Quando feliz, Lewis tinha um rosto assustador. Com sua cabeça grande de queixo fino e cabelos castanhos com avantajadas entradas, seus olhinhos pequenos e profundos, emoldurados por sobrancelhas cheias e arqueadas, ele tinha um ar intimidador. Porém, quando triste ou assustado, parecia extremamente vulnerável. Era ali que eu entrava - aproveitava seus momentos de sensibilidade para extrair informações. Como um apicultor psicológico.
- Eu discuti com Hank. - Respondeu ele.
- Hank? - Repeti, posicionando a caneta e o caderno. - Quem é Hank?
- O grandalhão que fica aí fora, nos observando. - Falou, levantando o olhar para o mesmo.
- O que houve? - Perguntei, temendo sua resposta.
- Eu discuti com ele.
- Sobre...?
- Ele estava andando por aqui com o diretor, e me chamou de maluco. Eu retruquei, dizendo que não era maluco. Então ele caçoou de mim, e eu o xinguei.
- Na frente do diretor?
- Na frente do diretor. - Ele assentiu, olhando pra cima, as rugas da testa enrijecendo. - Ele disse que vou ficar três dias sem comer nem beber nada.
- Três dias? - Repeti, tomando nota.
- Não sei quantos já passaram, mas parece que foi um tempão. Minha boca está seca, doutor. Está rachando. - Reclamou, mordendo os lábios e arrancando a pele deles com os dentes.
- Eles não podem fazer isso contigo. - Falei. - Sua família sabe o que isso está acontecendo? Você pediu para que eles fossem contactados?
- Minha família não liga para mim. - Gritou ele, com olhos lacrimosos. - Eu nem sei onde minha ex-esposa está agora. E minha filha me odeia.
- Não seja assim - Disse eu, tentando reconfortá-lo - Você vai ficar melhor, Lewis. Está fazendo um progresso muito bom desde que começamos essas sessões semanais. Você vai ficar bem.
- Não vou. - Ralhou ele, virando-se em sua cama e olhando para a parede, suas costas apontando para mim. - Eu serei eternamente perturbado por ter sido um prisioneiro dessa porcaria.
- Você não é um prisoneiro. - Corrigi. - É um paciente.
Ele virou-se rapidamente para mim, os olhos esbugalhados saltando das órbitas.
- PACIENTE?! - Repetiu ele, virando sua cabeça para os lados como uma coruja. - Eu estou confinado nessa cela. Não consigo nem ter movimentos livres por causa desse negócio prendendo meus braços. Sou obrigado a tomar diariamente remédios que eu nem sei para que servem. Isso não é um hospital, doutor. É um presídio. A diferença é que, ao invés de criminosos, ele está cheio de loucos.
Eu observava e ouvia, em silêncio.
- Vocês tentam me curar. Mas não há como me curar. Eu posso ser louco, mas não sou idiota. Eu sei como as coisas funcionam. E sei que nunca serei plenamente reconhecido por vocês, "sãos", nesse mundinho maldito. Mas sabe de uma coisa?! Estou bem aqui. Estou MUITO bem. Eu não faço questão de ser aceito nesse planetinha moribundo. Vocês me exilam, achando que eu sou perigoso, quando não veem que não sou eu que mato, abuso, manipulo e desrespeito meus semelhantes, dia após dia. Se isso é ser louco, eu estou muito bem assim.
Hank, o segurança, bateu no vidro da escotilha, apontando para o pulso com o sinal de que a sessão havia acabado. Mais cedo do que de costume, imaginei. Acho que ele deve ter ficado preocupado com a reação de meu paciente.
Levantei-me e respirei fundo, antes de me despedir.
- Adeus, Lewis.
Ele me observou, sombrio.
- Eu não fiz nenhum progresso hoje, nesse seu quesito, fiz?
Olhei em seus olhos por alguns segundos antes de responder.
- Muito pelo contrário.
Virei-me e encontrei Hank abrindo a porta. Ele me acompanhou no caminho para a saída do bloco de celas.
- As coisas estão cada vez mais difícil com Lewis. - Comentou Hank.
- Certamente. - Respondi. - Mas não seja assim tão duro com ele. Volte a trazer-lhe comida. Ele precisa.
Ele resmungou.
- Sabe. - Disse ele - Mesmo um relógio quebrado marca a hora certa duas vezes ao dia. Apesar de ser um maluco, o Lewis fala umas coisas que te deixam pensando de vez em quando.
- Verdade. - Falei, antes de sair e caminhar para pegar o transporte público.
Pensei muito nas palavras de Lewis e de Hank durante minha breve caminhada. "Mesmo um relógio quebrado marca a hora certa duas vezes ao dia". As vezes, acho que Lewis está certo. Foi naquele dia que decidi que eu não poderia mais fazer aquilo. Dei meia-volta, retornei ao Asilo Mental e pedi demissão.
Cheguei em casa aliviado, como se eu fosse o titã Atlas após tirar o peso do mundo dos ombros. Fitei o relógio que marcava 12:05, na parede da cozinha. Larguei o caderno de trabalho sobre a mesa e puxei o caderno de anotações. Risquei "Relógio novo" da lista.
quarta-feira, 27 de agosto de 2014
A capa amarela
Desde muito moço, estou habituado a acordar cedo. Não costumo dormir muito - geralmente deito onze e meia da noite e acordo cinco da manhã. Mas isso já é, para mim, o suficiente.
Visto-me no escuro, tendo como iluminação natural apenas a fraca luz da aurora do dia, enquanto ajeito o nó de minha gravata no espelho. Saio de casa e caminho pela calçada, olhando o rosto da cidade logo de manhã, quando é mais belo. O barulho oco de meus passos ecoa pelo chão, fazendo com que pombos voem para longe enquanto folhas deslizam, empurradas pelo vento.
Há um pequeno teatro, por onde costumo passar quase que diariamente, por encontrar-se no meio de minha trajetória diária. Parece estar sempre vazio e fechado, mas em frente a ele, encontrava-se sempre um sujeito.
Tratava-se de um homem alto, olhos verdes intensos e cabelos muito pretos penteados para trás. Vestia roupas muito gastas, como as de um príncipe de peças teatrais - presumia eu que era um dos figurinos velhos de algum espetáculo. Tudo estava muito encardido, de seus sapatos as abotoaduras das mangas do paletó, mas, em contraste com aquele figurino envelhecido, ele trajava uma capa amarela, que era tão brilhosa e elegante que dava beleza e um ar nobre àquela figura, ofuscando a fantasia velha e o rosto cansado. Parecia, de fato, um príncipe dinamarquês.
Estava sempre lendo alguns papéis em voz alta, fazendo com que a maioria das pessoas que por ele passassem o olhassem de forma pouco amistosa, julgando-o mentalmente. Mas eu, que tinha um olhar estanque, gostava de reparar no que ele estava lendo.
Era um texto muito bonito. De início, não sabia se era uma passagem da bíblia, um monólogo teatral ou simplesmente trechos de um poema. Mas soava muito bem, e a melhor parte de minha trajetória diária era, sem dúvida, ouvir as palavras daquele homem.
- Ultimamente, não sei por quê - O homem proclamava em alto e bom tom, enquanto eu caminhava em direção ao teatro - perdi toda a alegria, desprezei todo o hábito dos exercícios, e, realmente, tudo pesa tanto na minha disposição que este grande cenário, a terra, me parece agora um promontório estéril; este magnífico dossel, o ar, vede, este belo e flutuante firmamento, este teto majestoso, ornado de ouro e flama, não me parece mais que uma repulsiva e pestilenta congregação de vapores.
A oratória dele era muito boa, e seu tom de voz voraz chamava a atenção de quem passava (infelizmente, nem sempre, de maneira positiva). Após algumas semanas, eu já sabia de cor o texto que ele lia.
- Que obra de arte é o homem! Como é nobre na razão! - Gritava ele, na segunda parte do monólogo, que era recitada com mais vontade e energia do que a primeira. - Como é infinito em faculdades! Na forma e no movimento, como é expressivo e admirável! Na ação, é como um anjo! Em inteligência, é como um deus! A beleza do mundo! O paradigma dos animais! E, no entanto, para mim, o que é esta quintessência do pó?
- O homem não me satisfaz - Murmurava eu, quando passava, em uníssono com o final do discurso daquela figura. - Não, nem a mulher também.
Um dia, intrigado, decidi tomar coragem de perguntar para o homem do que se tratava aquele texto.
Caminhei à passos largos, decidido, até o teatro, e, quando cheguei, fui surpreendido. Pela primeira vez em semanas, ele não estava lá. Mas havia algo diferente naquele teatro. Alguns sons pareciam sair de dentro dele, e, na fachada do pequeno prédio, um letreiro anunciava: "HAMLET".
Após erguer a cabeça e ler aquilo, sorri. Eu havia lido Hamlet quando era garoto, naturalmente, com propósitos letivos. Lembrava que o protagonista era uma figura brava, destemida e determinada.
"Não existe", pensei eu, "ninguém melhor para interpretar Hamlet do que o homem da capa amarela".
Há um pequeno teatro, por onde costumo passar quase que diariamente, por encontrar-se no meio de minha trajetória diária. Parece estar sempre vazio e fechado, mas em frente a ele, encontrava-se sempre um sujeito.
Tratava-se de um homem alto, olhos verdes intensos e cabelos muito pretos penteados para trás. Vestia roupas muito gastas, como as de um príncipe de peças teatrais - presumia eu que era um dos figurinos velhos de algum espetáculo. Tudo estava muito encardido, de seus sapatos as abotoaduras das mangas do paletó, mas, em contraste com aquele figurino envelhecido, ele trajava uma capa amarela, que era tão brilhosa e elegante que dava beleza e um ar nobre àquela figura, ofuscando a fantasia velha e o rosto cansado. Parecia, de fato, um príncipe dinamarquês.
Estava sempre lendo alguns papéis em voz alta, fazendo com que a maioria das pessoas que por ele passassem o olhassem de forma pouco amistosa, julgando-o mentalmente. Mas eu, que tinha um olhar estanque, gostava de reparar no que ele estava lendo.
Era um texto muito bonito. De início, não sabia se era uma passagem da bíblia, um monólogo teatral ou simplesmente trechos de um poema. Mas soava muito bem, e a melhor parte de minha trajetória diária era, sem dúvida, ouvir as palavras daquele homem.
- Ultimamente, não sei por quê - O homem proclamava em alto e bom tom, enquanto eu caminhava em direção ao teatro - perdi toda a alegria, desprezei todo o hábito dos exercícios, e, realmente, tudo pesa tanto na minha disposição que este grande cenário, a terra, me parece agora um promontório estéril; este magnífico dossel, o ar, vede, este belo e flutuante firmamento, este teto majestoso, ornado de ouro e flama, não me parece mais que uma repulsiva e pestilenta congregação de vapores.
A oratória dele era muito boa, e seu tom de voz voraz chamava a atenção de quem passava (infelizmente, nem sempre, de maneira positiva). Após algumas semanas, eu já sabia de cor o texto que ele lia.
- Que obra de arte é o homem! Como é nobre na razão! - Gritava ele, na segunda parte do monólogo, que era recitada com mais vontade e energia do que a primeira. - Como é infinito em faculdades! Na forma e no movimento, como é expressivo e admirável! Na ação, é como um anjo! Em inteligência, é como um deus! A beleza do mundo! O paradigma dos animais! E, no entanto, para mim, o que é esta quintessência do pó?
- O homem não me satisfaz - Murmurava eu, quando passava, em uníssono com o final do discurso daquela figura. - Não, nem a mulher também.
Um dia, intrigado, decidi tomar coragem de perguntar para o homem do que se tratava aquele texto.
Caminhei à passos largos, decidido, até o teatro, e, quando cheguei, fui surpreendido. Pela primeira vez em semanas, ele não estava lá. Mas havia algo diferente naquele teatro. Alguns sons pareciam sair de dentro dele, e, na fachada do pequeno prédio, um letreiro anunciava: "HAMLET".
Após erguer a cabeça e ler aquilo, sorri. Eu havia lido Hamlet quando era garoto, naturalmente, com propósitos letivos. Lembrava que o protagonista era uma figura brava, destemida e determinada.
"Não existe", pensei eu, "ninguém melhor para interpretar Hamlet do que o homem da capa amarela".
Seis pistolas e uma adaga
Museus são ambientes tão informativos e interessantes que não entendo como alguém pode não gostar destes.
Lá estava eu, ponderando em um largo saguão, vazio, a não ser por mim e pelos objetos em exposição. Estava observando especificamente um conjunto de pistolas do século XVII. Haviam envelhecido muito mal - estavam cheias de manchas e pareciam muito malcuidadas, como se seu dono, na época, não se importasse muito com elas, e os restauradores do museu, muito menos. Estavam deitadas sobre uma mesa branca, enfileiradas e cobertas por uma vidraça linda e clara como um lago cristalino e cheio de sonhos. Ao lado delas, havia uma adaga de combate, guardada em uma bainha de couro muito gasta.
- Fico pensando quantos pescoços essa adaga já perfurou - Disse uma voz ao meu lado, pegando-me de surpresa.
Girei nos calcanhares e virei-me para ver quem seria essa figura, que parecia ter saído das sombras, e agora comentava casualmente comigo à respeito de armas brancas. Era um homem muito idoso, um pouco acima do peso. Tinha um cabelo branco e fofo como algodão, olhos azuis elétricos, saltados e profundos. Seu rosto enrugado era bondoso, e um pequeno sorriso estava emoldurado em sua pele macilenta. O homem, curioso, estava à minha direita, apoiado em sua bengala para ver a vitrine mais de perto.
- Desculpe. - Balbuciei. - Não vi o senhor chegando.
- Ora, não se preocupe com isso. - Respondeu o homem, com uma voz grave, porém amigável - E não precisa me chamar de "senhor".
- Certo. Como se chama? - Perguntei
- Não me chamo. - Respondeu ele, com um risinho travesso - Meu nome não importa muito. Sou o Curador desse museu. Bom, um deles. A maioria dos outros não liga muito pra esse lugar, e está ocupada demais lendo revistas, tomando café com bolachas ou dormindo em expediente. Mas eu sou o Curador principal. O original, caso você assim prefira. Esse museu é um lugar incrível. Estou sempre dando uma volta pelas minhas salas favoritas. Temos de tudo aqui, sabe. Armas, armaduras, estátuas, pinturas... tem umas que são tão detalhadas que parecem até que são momentos reais capturados numa tela.
- Tem realmente algumas coisas muito interessantes aqui - Concordei. - Senhor... curador.
- Assim está melhor. - Respondeu ele, com aquele sorriso tão travesso que parecia ter sido tirado de um duende trapaceiro de contos de fadas, mas ainda assim, transmitia simpatia.
- Estou só de passagem por essas cidade. - Falei. - Sou um viajante. Há alguns meses atrás, decidi sair da rotina para ver algumas coisas novas. Amanhã estou zarpando para a Irlanda.
- Lugar bonito - Comentou o Curador - Apenas uma dica. Trevos de quatro folhas e coquetéis molotov, combinação perigosa.
Não entendi o que ele quis dizer com isso, mas acenei com a cabeça demonstrando compreensão. Essa é uma das minhas piores manias. Quando estou divagando em meus devaneios e acabo não entendendo algum comentário de meus interlocutores, eu simplesmente aceno a cabeça.
- Já parou para pensar que você é História viva? - Perguntou o Curador.
- História viva? - Repeti.
- Sim. - Respondeu o mesmo. - História viva. Tudo o que está aqui, veja você, fez parte do passado. Roupas que alguém utilizou na renascença italiana, armas de combate da idade média, artefatos tribais de séculos atrás... em suas respectivas épocas, ninguém nunca pensou que aquilo poderia vir a ser história. Você acha que Van Gogh um dia sequer pensou que viria a ser um dos pintores mais famosos de todos os tempos?
- Não. - Disse, simplesmente.
- Não. - Afirmou o Curador. - Van Gogh nunca sequer vendeu um quadro na vida. Ele jamais pensou que entraria para a História. Você já pensou que pode entrar para a História? Ela é feita de gente comum, como eu e você. Nem todas as figuras mundialmente conhecidas são extraordinárias ou autores de façanhas notáveis. São apenas pessoas que viveram uma vida comum, sem saber que, indiretamente, contribuíram com o andamento da humanidade.
Parei para pensar nas palavras daquele senhor de voz grave e cabelos de algodão.
- Essa é uma filosofia de vida bem comovente. - Falei, após alguns segundos.
- De fato é. - Concordou o Curador, com um tom de voz satisfeito, como se estivesse feliz com o fato de que alguém concordara com sua opinião. - Agora, com licença. Você estará muito ocupado logo logo, creio eu.
Ergui uma sobrancelha.
- O que quer dizer com isso? - Perguntei, curioso.
Ele exibiu seus dentes amarelados em um último sorriso.
- Eu não gosto de alterar o curso da história. Continue sendo quem você é. Isso pode ter uma importância vital para o futuro.
Lá estava eu, ponderando em um largo saguão, vazio, a não ser por mim e pelos objetos em exposição. Estava observando especificamente um conjunto de pistolas do século XVII. Haviam envelhecido muito mal - estavam cheias de manchas e pareciam muito malcuidadas, como se seu dono, na época, não se importasse muito com elas, e os restauradores do museu, muito menos. Estavam deitadas sobre uma mesa branca, enfileiradas e cobertas por uma vidraça linda e clara como um lago cristalino e cheio de sonhos. Ao lado delas, havia uma adaga de combate, guardada em uma bainha de couro muito gasta.
- Fico pensando quantos pescoços essa adaga já perfurou - Disse uma voz ao meu lado, pegando-me de surpresa.
Girei nos calcanhares e virei-me para ver quem seria essa figura, que parecia ter saído das sombras, e agora comentava casualmente comigo à respeito de armas brancas. Era um homem muito idoso, um pouco acima do peso. Tinha um cabelo branco e fofo como algodão, olhos azuis elétricos, saltados e profundos. Seu rosto enrugado era bondoso, e um pequeno sorriso estava emoldurado em sua pele macilenta. O homem, curioso, estava à minha direita, apoiado em sua bengala para ver a vitrine mais de perto.
- Desculpe. - Balbuciei. - Não vi o senhor chegando.
- Ora, não se preocupe com isso. - Respondeu o homem, com uma voz grave, porém amigável - E não precisa me chamar de "senhor".
- Certo. Como se chama? - Perguntei
- Não me chamo. - Respondeu ele, com um risinho travesso - Meu nome não importa muito. Sou o Curador desse museu. Bom, um deles. A maioria dos outros não liga muito pra esse lugar, e está ocupada demais lendo revistas, tomando café com bolachas ou dormindo em expediente. Mas eu sou o Curador principal. O original, caso você assim prefira. Esse museu é um lugar incrível. Estou sempre dando uma volta pelas minhas salas favoritas. Temos de tudo aqui, sabe. Armas, armaduras, estátuas, pinturas... tem umas que são tão detalhadas que parecem até que são momentos reais capturados numa tela.
- Tem realmente algumas coisas muito interessantes aqui - Concordei. - Senhor... curador.
- Assim está melhor. - Respondeu ele, com aquele sorriso tão travesso que parecia ter sido tirado de um duende trapaceiro de contos de fadas, mas ainda assim, transmitia simpatia.
- Estou só de passagem por essas cidade. - Falei. - Sou um viajante. Há alguns meses atrás, decidi sair da rotina para ver algumas coisas novas. Amanhã estou zarpando para a Irlanda.
- Lugar bonito - Comentou o Curador - Apenas uma dica. Trevos de quatro folhas e coquetéis molotov, combinação perigosa.
Não entendi o que ele quis dizer com isso, mas acenei com a cabeça demonstrando compreensão. Essa é uma das minhas piores manias. Quando estou divagando em meus devaneios e acabo não entendendo algum comentário de meus interlocutores, eu simplesmente aceno a cabeça.
- Já parou para pensar que você é História viva? - Perguntou o Curador.
- História viva? - Repeti.
- Sim. - Respondeu o mesmo. - História viva. Tudo o que está aqui, veja você, fez parte do passado. Roupas que alguém utilizou na renascença italiana, armas de combate da idade média, artefatos tribais de séculos atrás... em suas respectivas épocas, ninguém nunca pensou que aquilo poderia vir a ser história. Você acha que Van Gogh um dia sequer pensou que viria a ser um dos pintores mais famosos de todos os tempos?
- Não. - Disse, simplesmente.
- Não. - Afirmou o Curador. - Van Gogh nunca sequer vendeu um quadro na vida. Ele jamais pensou que entraria para a História. Você já pensou que pode entrar para a História? Ela é feita de gente comum, como eu e você. Nem todas as figuras mundialmente conhecidas são extraordinárias ou autores de façanhas notáveis. São apenas pessoas que viveram uma vida comum, sem saber que, indiretamente, contribuíram com o andamento da humanidade.
Parei para pensar nas palavras daquele senhor de voz grave e cabelos de algodão.
- Essa é uma filosofia de vida bem comovente. - Falei, após alguns segundos.
- De fato é. - Concordou o Curador, com um tom de voz satisfeito, como se estivesse feliz com o fato de que alguém concordara com sua opinião. - Agora, com licença. Você estará muito ocupado logo logo, creio eu.
Ergui uma sobrancelha.
- O que quer dizer com isso? - Perguntei, curioso.
Ele exibiu seus dentes amarelados em um último sorriso.
- Eu não gosto de alterar o curso da história. Continue sendo quem você é. Isso pode ter uma importância vital para o futuro.
segunda-feira, 25 de agosto de 2014
O homem do bigode espesso e do chapéu escarlate
O parque é um bom lugar para se dar uma volta. Respirar fundo. Não sou uma pessoa de hábitos sociáveis - Meus poucos amigos me consideram muito recluso e brincam com o fato de minha vida social ser pouco movimentada. Mas de vez em quando, aprecio prazeres simples da vida, como uma caminhada pelo centro da cidade ou um fim de tarde observando o litoral. Nunca gostei de frequentar praias socialmente, mas sou apaixonado pelo modo com que as ondas delineiam e quebram-se nas rochas e na areia, todo esse cenário recortado pela serenidade transmitida por um céu cinzento, característico de dias nublados.
Mas nesse dia, em especial, estava no parque da cidade. Não via o parque desde que eu era bem moço, mas lembrava claramente de suas características: As cercas metálicas pintadas de verde-escuro, as árvores de todos os tipos, o cheiro de terra molhada, as fontes jorrando água cristalina, o cheiro de pipoca e o barulho das crianças brincando. Aquele parque não havia mudado nada em anos. Acho que algumas áreas mais tradicionais de cidades não tão grandes tem essa magia. Conseguem reter memórias. Como se a infância fosse uma caneta tinteiro, e os parques fossem folhas de papel creme que retém nossos anos de alvorada e os mantém em forma de um poema, que está lá para ser apreciado de tempos em tempos.
Caminho preguiçosamente naquela tarde quente de verão enquanto vejo os raios de sol transpassarem entre as folhas, mãos nos bolsos, a cabeça erguida, um sorriso jovial emoldurado no rosto e os pés se sentindo maravilhados em pisar naquele chão terroso e fofo. Aproximo-me então de um pequeno branco, como aqueles de praça, aonde vejo uma figura singular.
Tratava-se de um senhor, que devia estar na segunda metade de seus cinquenta anos. Trajava um terno bege de feltro, sapatos muito gastos e, sobre o colo, um chapéu escarlate de abas largas, que pendiam sobre suas pernas. Seu cabelo, que aparentava já ter sido castanho, agora era ralo no topo da cabeça, e tinha um bigode muito bem aparado e castanho como os pelos de um cavalo bem cuidado. Segurava um pão com uma mão, e, com a outra, destacava alguns pedaços do mesmo e lançava-os ao chão, onde eram muito bem recebidos por um pequeno grupo de pombos.
- Boa tarde. - Cumprimentei-o quando sentei-me ao seu lado. Ele acenou com a cabeça, demonstrando que reconhecera minha chegada. Mas não respondeu.
- Sabe - Comecei, tentando puxar assunto - nasci e fui criado nesta cidade. Aqui vi meus melhores amigos partirem para a capital em busca de trabalho. Vi inúmeros almoços de família e situações excepcionais. Mas acho que todos que já viveram por certo período de tempo aqui têm alguma história para contar que é ambientada neste mesmíssimo parque.
O senhor do chapéu escarlate levantou seus olhos, cinzentos, porém escuros e profundos, como o mar em um dia de tempestade, do chão. Virou seu rosto para mim, mas os olhos agora apontavam para o céu. Um sorriso discreto estampou, levemente, o canto de seus lábios e ele soltou uma risadinha.
- Verdade. - Concordou ele, com um suspiro. - Minha esposa adorava esse parque. Foi aqui que nos conhecemos.
Olhei para o chapéu e depois para o semblante nostálgico de meu interlocutor, e logo fiquei com os olhos marejados.
- Locais assim podem ser mágicos. - Falei, dando-lhe alguns amigáveis tapinhas nas costas. Levantei-me.
- Espero que um dia eu também tenha a sorte de vivenciar uma situação tão extraordinária em um lugar excepcional como esse.
Ele demorou alguns segundos antes de responder.
- Não é isso que todos queremos?
Caminho preguiçosamente naquela tarde quente de verão enquanto vejo os raios de sol transpassarem entre as folhas, mãos nos bolsos, a cabeça erguida, um sorriso jovial emoldurado no rosto e os pés se sentindo maravilhados em pisar naquele chão terroso e fofo. Aproximo-me então de um pequeno branco, como aqueles de praça, aonde vejo uma figura singular.
Tratava-se de um senhor, que devia estar na segunda metade de seus cinquenta anos. Trajava um terno bege de feltro, sapatos muito gastos e, sobre o colo, um chapéu escarlate de abas largas, que pendiam sobre suas pernas. Seu cabelo, que aparentava já ter sido castanho, agora era ralo no topo da cabeça, e tinha um bigode muito bem aparado e castanho como os pelos de um cavalo bem cuidado. Segurava um pão com uma mão, e, com a outra, destacava alguns pedaços do mesmo e lançava-os ao chão, onde eram muito bem recebidos por um pequeno grupo de pombos.
- Boa tarde. - Cumprimentei-o quando sentei-me ao seu lado. Ele acenou com a cabeça, demonstrando que reconhecera minha chegada. Mas não respondeu.
- Sabe - Comecei, tentando puxar assunto - nasci e fui criado nesta cidade. Aqui vi meus melhores amigos partirem para a capital em busca de trabalho. Vi inúmeros almoços de família e situações excepcionais. Mas acho que todos que já viveram por certo período de tempo aqui têm alguma história para contar que é ambientada neste mesmíssimo parque.
O senhor do chapéu escarlate levantou seus olhos, cinzentos, porém escuros e profundos, como o mar em um dia de tempestade, do chão. Virou seu rosto para mim, mas os olhos agora apontavam para o céu. Um sorriso discreto estampou, levemente, o canto de seus lábios e ele soltou uma risadinha.
- Verdade. - Concordou ele, com um suspiro. - Minha esposa adorava esse parque. Foi aqui que nos conhecemos.
Olhei para o chapéu e depois para o semblante nostálgico de meu interlocutor, e logo fiquei com os olhos marejados.
- Locais assim podem ser mágicos. - Falei, dando-lhe alguns amigáveis tapinhas nas costas. Levantei-me.
- Espero que um dia eu também tenha a sorte de vivenciar uma situação tão extraordinária em um lugar excepcional como esse.
Ele demorou alguns segundos antes de responder.
- Não é isso que todos queremos?
O Homem que Continua Correndo
Há muito tempo havia saído de casa. Talvez sequer se lembrasse da última vez que vira algum de seus parentes. Mas fazia algo que gostava muito - correr.
Corria por onde passava, e, correndo, acabava passando por novos lugares, conhecendo gente nova e se despedindo de conhecidos antigos. Esse ciclo parecia eterno. Muitas pessoas conseguiam acompanhar o homem que corria em seu percurso, mas nenhum tinha fôlego para o seguir por muito tempo. Ele eventualmente sempre acabava sozinho.
Mas não era nisso que focava. Gostava de prestar bastante atenção nos períodos em que havia alguém ao seu lado. Enquanto corriam, o homem conversava, ria e trocava culturas e experiências com seus companheiros. Ele parecia nunca se cansar.
O Homem que continua correndo, pois não se atreve a olhar para trás.
Corria por onde passava, e, correndo, acabava passando por novos lugares, conhecendo gente nova e se despedindo de conhecidos antigos. Esse ciclo parecia eterno. Muitas pessoas conseguiam acompanhar o homem que corria em seu percurso, mas nenhum tinha fôlego para o seguir por muito tempo. Ele eventualmente sempre acabava sozinho.
Mas não era nisso que focava. Gostava de prestar bastante atenção nos períodos em que havia alguém ao seu lado. Enquanto corriam, o homem conversava, ria e trocava culturas e experiências com seus companheiros. Ele parecia nunca se cansar.
O Homem que continua correndo, pois não se atreve a olhar para trás.
Assinar:
Postagens (Atom)