O Silva era um homem jovem, mas seu rosto magro e encovado, encapado por uma pele pálida macilenta, coberta por uma castanha barba à fazer, fazia com que ele parecesse bem mais velho. Mechas de seu cabelo cobriam o rosto, empapadas pela chuva e pelo suor. Estava triste, o Silva. Era pobre. Há um mês, havia se divorciado. Há uma semana, havia sido demitido de seu emprego. Vivia em uma casa pequena e alugada, e logo o dinheiro para manter-se ali acabaria. Procurara incessavelmente por trabalho em toda a cidade do Rio, mas sua busca havia sido infrutífera.
Rumava à um velho prédio abandonado. O Silva não sabia, mas há pouco tempo atrás, aquela construção abrigara uns dez, onze, jovens encortiçados. Porém eles haviam sido expulsos, pois agora esse prédio seria demolido. Mais específicamente, nessa mesmíssima noite. E era por isso que ele estava ali.
O quarteirão estava fechado para a demolição do prédio. Mas isso não foi o suficiente para impedir o Silva de entrar no local. Haviam supervisores fazendo uma ronda pela área para garantir que ninguém entrasse e se machucasse. Escondido, o Silva pegou uma pedra no chão e lançou-a em uma parede distante de onde ele estava escondido. O supervisor que estava por perto ouviu o barulho da pedra se chocando, e dirigiu-se ao local de onde o barulho havia se manifestado. Isso deu tempo suficiente para o Silva esgueirar-se, pular um cavalete e entrar na velha construção.
O Silva já não era mais um menino, mas tinha uma agilidade digna da de um capitão da areia. Em meio à degraus faltando e buracos no assoalho, chegou no terceiro - e último - andar do prédio. Arrancou uma porta emperrada com o pé de cabra que trazia consigo, e entrou em uma saleta de paredes cobertas de limo. Largou o pé de cabra no chão, e sentou-se, encostado num canto, e chorou. Mas chorou baixo, pois sabia que se alguém o ouvisse, ele seria tirado dali.
Então, olhou para cima, o rosto vermelho e os olhos miúdos e eclipsados de lágrimas. Conseguia vagamente enxergar, entre os pedaços do teto onde faltava cobertura, as estrelas. Por pior que nosso dia esteja sendo, para os outros, ele pode estar sendo apenas mais um dia normal, como qualquer outro. E era nisso que o Silva pensou ao olhar para as estrelas daquela noite embaçada.
Ele ouviu um movimento lá em baixo. Os homens estavam terminando os preparativos para a demolição. Fungou e levantou-se. Tirou o agasalho marrom velho e jogou-o num canto. Estalou os dedos - uma pequena mania que tinha desde pequeno, e uma das poucas coisas prazerosas que lhe haviam restado - e depois esticou os braços. Então, fechou os olhos.
O chão sob seus pés começou a tremer. Sentia pedaços de madeira e concreto caindo por perto, abrindo buracos no piso. Então, um baque em sua cabeça. Não sentiu mais nada.
O Silva acordou, não sabia quanto tempo depois, em uma sala de hospital, deitado em uma maca. Praguejou baixinho. Nem morrer ele conseguia fazer direito. Então percebeu que uma pessoa que não conhecia estava sentada ao lado da maca, o observando.
Era um homem de feições gentis. Assim como o Silva, também tinha uma barba castanha por fazer, e olhos muito escuros, mas seu rosto era corado, apesar de não muito cheio. O cabelo era preso em um rabo de cavalo, e o corpo esguio vestia roupas simples.
- Ah, você acordou. - Disse o homem. - Os médicos estavam duvidando. E eu também. Mas fico feliz que você conseguiu.
- Desculpa, eu, eu... eu acho que não te conheço. - Murmurou o Silva, piscando, os olhos desacostumados com a luz forte da sala.
- Não conhece mesmo. - Admitiu o desconhecido, estendendo a mão. - Meu nome é Eduardo.
O Silva não apertou a mão.
- Olha, eu não quero ser mal-educado, mas... o que você está fazendo no meu leito? - Perguntou ele.
- Eu na verdade tinha vindo aqui visitar minha avó. - Explicou Eduardo. - Há alguns corredores de distância daqui. Mas ela morreu há algumas horas atrás. Eu estava indo embora, quando entreouvi uma conversa entre alguns médicos sobre você. Disseram que não havia ninguém contigo aqui. Então menti: disse que eu era um primo seu, e que queria ver-lo.
Ambos ficaram constrangidos, em silêncio, por alguns segundos.
- Por que? - Perguntou o Silva, enfim.
- Porquê ninguém deve morrer sozinho. - Respondeu Eduardo, sombrio. - Ainda bem que você conseguiu voltar.
- É, eu não acho. - Resmungou o outro, em resposta.
Um médico entrou na sala.
- Ah, excelente! - Disse o médico, com um sorriso. - Está acordado, então.
- Infelizmente. - Ralhou o Silva. - Quanto tempo eu tenho que ficar por aqui até que eu tenha alta?
O médico checou alguma coisa na prancheta que trazia consigo.
- Na verdade, mais algumas horas. Você deu sorte. Está quase sem nenhum arranhão. A única coisa que aconteceu foi escombro, que atingiu sua cabeça, te nocauteando e formando um galo. Depois, você caiu de alguns andares, mas, pelo que consta aqui, uma pilha de entulho amorteceu o impacto. Então, alguns escombros maiores te cobriram, impedindo que você fosse atingido por outras coisas. Se isso não é sorte, não sei qual é o nome.
- Maldição. - Sussurrou o Silva, para si mesmo.
O médico saiu do quarto, e Eduardo o seguiu, acenando em despedida.
Após uma ou duas horas (o Silva era péssimo em medir a passagem do tempo), o Silva foi liberado do hospital. No caminho da saída, não pode deixar de reparar como este estava vazio.
Saiu pela porta da frente, e, para sua surpresa, se deparou Eduardo sentado nos degraus. Aos seus pés, uma embalagem, com seis garrafas de cerveja.
- Ei! - Saudou Eduardo, alegre.
- ...Eles te deixam beber cerveja na escada do hospital? - Perguntou o outro, sentando-se ao lado.
- Normalmente, acho que não é permitido. Mas o movimento está fraco hoje. - Respondeu Eduardo, abrindo uma garrafa. - Você bebe?
- Normalmente, não. Mas depois do que aconteceu comigo, acho que eu beberia até água sanitária. - Disse o Silva, estendendo o braço para tomar a garrafa.
Eduardo abriu outra para si.
- Qual é o seu nome? - Indagou ele, por fim. - Ouvi uma conversa entre os médicos, mas eles foram meio vagos nos detalhes. É Silva, não é?
- Sim. - Afirmou o mesmo. - Lázaro.
- Lázaro Silva. - Repetiu Eduardo, como se gostasse do tom do nome. E deu uma risadinha.
- O que foi? - Perguntou o outro.
Eduardo deu um gole demorado.
- Você já leu a bíblia?
- Não. - Admitiu o Silva.
- Achei engraçado quando você falou o seu nome, pois tinha um Lázaro na bíblia.
- Bom, tem um monte de nomes na bíblia.
- Realmente. Mas acho que nenhum que tenha traçado um paralelo tão interessante. Uma coincidência, eu diria.
- O que?
- O médico disse que você foi achado entre os escombros de um prédio que havia sido demolido, certo?
- Sim.
- Você não deveria estar lá.
- Não mesmo. Eu havia ido para me suicidar.
- E é por isso mesmo que eu acho tão interessante esse paralelo. Na bíblia, Lázaro voltou dos mortos.
O Silva deu um gole e limpou a boca com as costas da mão.
- Você tá inventando isso.
- Não estou. - Respondeu o outro.
- Olha, quem é você, afinal?
Eduardo estendeu a mão.
- Que tal um amigo?
O Silva olhou o sujeito de cima a baixo. Então, apertou sua mão.
- Que seja. Você me conheceu num período muito estranho da minha vida.
- Bem, vamos mudar isso.
- Você sabe de alguém que tenha um emprego? Se eu atrasar mais um mês de aluguel acho que o proprietário da minha casa corta fora minha cabeça.
- Onde você mora?
- Na rua Matacavalos.
- Então, eu conheço esse cara que trabalha no necrotério. Eles estão precisando de um faxineiro pro período da tarde.
O Silva fez cara feia.
- Faxineiro?
- Eles pagam bem. - Garantiu Eduardo
- ...me passa o telefone desse seu amigo, por favor. - Disse o Silva, por fim.
- Pode deixar.
Eles olharam para um pátio, que ficava do outro lado da rua. Nele, crianças brincavam alegremente, sem saber do que o amanhã lhes reservava.
Era um homem de feições gentis. Assim como o Silva, também tinha uma barba castanha por fazer, e olhos muito escuros, mas seu rosto era corado, apesar de não muito cheio. O cabelo era preso em um rabo de cavalo, e o corpo esguio vestia roupas simples.
- Ah, você acordou. - Disse o homem. - Os médicos estavam duvidando. E eu também. Mas fico feliz que você conseguiu.
- Desculpa, eu, eu... eu acho que não te conheço. - Murmurou o Silva, piscando, os olhos desacostumados com a luz forte da sala.
- Não conhece mesmo. - Admitiu o desconhecido, estendendo a mão. - Meu nome é Eduardo.
O Silva não apertou a mão.
- Olha, eu não quero ser mal-educado, mas... o que você está fazendo no meu leito? - Perguntou ele.
- Eu na verdade tinha vindo aqui visitar minha avó. - Explicou Eduardo. - Há alguns corredores de distância daqui. Mas ela morreu há algumas horas atrás. Eu estava indo embora, quando entreouvi uma conversa entre alguns médicos sobre você. Disseram que não havia ninguém contigo aqui. Então menti: disse que eu era um primo seu, e que queria ver-lo.
Ambos ficaram constrangidos, em silêncio, por alguns segundos.
- Por que? - Perguntou o Silva, enfim.
- Porquê ninguém deve morrer sozinho. - Respondeu Eduardo, sombrio. - Ainda bem que você conseguiu voltar.
- É, eu não acho. - Resmungou o outro, em resposta.
Um médico entrou na sala.
- Ah, excelente! - Disse o médico, com um sorriso. - Está acordado, então.
- Infelizmente. - Ralhou o Silva. - Quanto tempo eu tenho que ficar por aqui até que eu tenha alta?
O médico checou alguma coisa na prancheta que trazia consigo.
- Na verdade, mais algumas horas. Você deu sorte. Está quase sem nenhum arranhão. A única coisa que aconteceu foi escombro, que atingiu sua cabeça, te nocauteando e formando um galo. Depois, você caiu de alguns andares, mas, pelo que consta aqui, uma pilha de entulho amorteceu o impacto. Então, alguns escombros maiores te cobriram, impedindo que você fosse atingido por outras coisas. Se isso não é sorte, não sei qual é o nome.
- Maldição. - Sussurrou o Silva, para si mesmo.
O médico saiu do quarto, e Eduardo o seguiu, acenando em despedida.
Após uma ou duas horas (o Silva era péssimo em medir a passagem do tempo), o Silva foi liberado do hospital. No caminho da saída, não pode deixar de reparar como este estava vazio.
Saiu pela porta da frente, e, para sua surpresa, se deparou Eduardo sentado nos degraus. Aos seus pés, uma embalagem, com seis garrafas de cerveja.
- Ei! - Saudou Eduardo, alegre.
- ...Eles te deixam beber cerveja na escada do hospital? - Perguntou o outro, sentando-se ao lado.
- Normalmente, acho que não é permitido. Mas o movimento está fraco hoje. - Respondeu Eduardo, abrindo uma garrafa. - Você bebe?
- Normalmente, não. Mas depois do que aconteceu comigo, acho que eu beberia até água sanitária. - Disse o Silva, estendendo o braço para tomar a garrafa.
Eduardo abriu outra para si.
- Qual é o seu nome? - Indagou ele, por fim. - Ouvi uma conversa entre os médicos, mas eles foram meio vagos nos detalhes. É Silva, não é?
- Sim. - Afirmou o mesmo. - Lázaro.
- Lázaro Silva. - Repetiu Eduardo, como se gostasse do tom do nome. E deu uma risadinha.
- O que foi? - Perguntou o outro.
Eduardo deu um gole demorado.
- Você já leu a bíblia?
- Não. - Admitiu o Silva.
- Achei engraçado quando você falou o seu nome, pois tinha um Lázaro na bíblia.
- Bom, tem um monte de nomes na bíblia.
- Realmente. Mas acho que nenhum que tenha traçado um paralelo tão interessante. Uma coincidência, eu diria.
- O que?
- O médico disse que você foi achado entre os escombros de um prédio que havia sido demolido, certo?
- Sim.
- Você não deveria estar lá.
- Não mesmo. Eu havia ido para me suicidar.
- E é por isso mesmo que eu acho tão interessante esse paralelo. Na bíblia, Lázaro voltou dos mortos.
O Silva deu um gole e limpou a boca com as costas da mão.
- Você tá inventando isso.
- Não estou. - Respondeu o outro.
- Olha, quem é você, afinal?
Eduardo estendeu a mão.
- Que tal um amigo?
O Silva olhou o sujeito de cima a baixo. Então, apertou sua mão.
- Que seja. Você me conheceu num período muito estranho da minha vida.
- Bem, vamos mudar isso.
- Você sabe de alguém que tenha um emprego? Se eu atrasar mais um mês de aluguel acho que o proprietário da minha casa corta fora minha cabeça.
- Onde você mora?
- Na rua Matacavalos.
- Então, eu conheço esse cara que trabalha no necrotério. Eles estão precisando de um faxineiro pro período da tarde.
O Silva fez cara feia.
- Faxineiro?
- Eles pagam bem. - Garantiu Eduardo
- ...me passa o telefone desse seu amigo, por favor. - Disse o Silva, por fim.
- Pode deixar.
Eles olharam para um pátio, que ficava do outro lado da rua. Nele, crianças brincavam alegremente, sem saber do que o amanhã lhes reservava.
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