domingo, 19 de outubro de 2014

O Velho da Árvore

Em anos de treinamento como escoteiro durante minha infância, e mais um estendido período de expedições e treinamento em bosques e selvas, eu era convencido de que poderia cruzar qualquer caminho selvagem sem ficar impressionado com absolutamente nada. Ledo engano.

Era um belo dia de verão, daqueles em que o sol em pico esquenta a cabeça, fazendo o suor gotejar entre os fios de cabelo, e eu abria meu caminho em meio a uma mata virgem. Sentia os mosquitos avançando em minhas pernas, com o ânimo e a voracidade grandes como os de um homem que há muito está no deserto encontrando um oásis. Em meus braços, cortes provenientes de galhos, espinhos e pedras afiadas que cruzavam meu caminho. Os ombros doloridos de segurar minha mochila e os pés cansados depois da longa empreitada. Mas nada daquilo me abalava, pois eu já havia traçado meu objetivo, e estava determinado em alcançá-lo.

A praia do outro lado era minha meta. Era uma ilha relativamente pequena, do tamanho de um estado modesto de um país de terceiro mundo, e era consideravelmente desconhecida fora da região - caso eu me lembre bem, sequer possuía um nome. Eu estava lá simplesmente por diversão. Desde muito jovem, sempre fui um viciado em adrenalina. Depois de um tempo, montanhas russas e atrações banais já não me eram o suficiente, então, com o dinheiro que me sobrava, ano após ano, eu me metia nessas modestas aventuras em meus períodos de recesso.

Foi quando, de repente, me deparei com uma trilha, o que me causou estranheza. Eu acreditava ser pioneiro em desbravar aquela rota. O caminho rudimentar, simplesmente um espaço aberto entre a vasta gama de plantas, era tímido, mas notável. Alguém já havia estado ali antes. Claro, meus companheiros estavam na praia, me esperando, mas eles haviam chegado lá pelos aeroplanos. Decidi, então, dar ao meu facão um merecido descanso após alguns quilômetros de mato cortado e seguir pela trilha já estabelecida.

Peguei-me surpreso ao ver que, no fim da trilha, havia uma clareira. Vista de fora, a mata da ilha parecia extremamente fechada, e aquilo me embasbacou tanto quanto me agradou. Sentei em uma pedra ligeiramente menos limosa do que as demais e aproveitei para descansar um pouco. Respirei fundo, bebi uma água da garrafa que eu havia trago em minha mochila, amarrei os cadarços, que já estavam frouxos, e fiquei lá por alguns minutos, ouvindo os sons dos pássaros e observando as copas das árvores mais próximas.

Então vi algo surreal. Uma das árvores se destacava das outras, por, evidentemente, ser a maior. Tanto na altura quanto na largura. Em uma certa altura de seu tronco, havia um buraco, e dele, descia uma escada de corda. Entre a escada e o interior da árvore, havia uma pequena extensão vertical de madeira, como um chão, formando uma varanda rudimentar. E nessa varanda, estava uma figura no mínimo inusitada: Um homem aparentemente muito velho, de cabelos e barbas longos e brancos, pele morena e enrugada, sentado em uma cadeira de balanço e fumando um cachimbo.

Era difícil distinguir expressões faciais daquele rosto inédito por trás daquela espessa, mas eu pude sentir que, quando ele observou que eu havia notado sua presença, deu um sorrisinho. Não um sorriso maldoso, ou um sorriso de quem acabou de ouvir uma piada genial. Mas um sorriso travesso, como o que se vê no rosto de uma criança de 5 anos que tocou a campainha do vizinho e saiu correndo até o final da rua. Parecia estar se divertindo com o fato de que um estranho havia descoberto seu refúgio tropical e que levara um leve susto com sua presença inesperada.

- Suba, meu jovem. - Disse ele, com uma voz rouca porém jovial. - Não tenho companhia há anos. Preciso de alguém com quem eu possa colocar o papo em dia.

Eu geralmente não confiaria em velhos misteriosos que moram no meio da florestas e são estranhamente corteses, mas algo na carisma daquela figura me conquistou, e me senti inclinado a obedecer o comando solicitado logo de primeira. Enquanto eu subia pela escada de corda, ele levantou-se e entrou pelo buraco do tronco, sumindo dentro da árvore. Quando terminei a escalada, eu o segui, e me deparei com seu lar.

Dentro da árvore, havia um ambiente precário que, eu logo concluí, funcionava para aquele eremita como uma casa. Um banco de madeira forrado com algumas folhas, em um formato que lembrava uma cama, podia ser visto logo ao lado de um galho atravessado, onde estavam penduradas algumas peças de roupa esfarrapadas. Na outra parede, vindo do exterior, um pedaço de bambu cortado ao meio, com a concavidade virada para cima, trazia água da chuva para um grande recipiente, e, ao lado dele, haviam alguns menores. Também havia um outro buraco ligeiramente inclinado na vertical, o que me dava suspeitas de que, além daquilo, também havia um andar superior.

- Obrigado - Disse à figura hospitaleira, assim que entrei - senhor...

- Roosvelt. - Respondeu ele, me saudando com um vigoroso aperto de mãos.

- Baker. - Apresentei-me, em retribuição.

- Venha, suba. - Convidou ele, indo em direção ao tal buraco inclinado. - Lá em cima é mais apropriado para visitas.

Segui Roosvelt, e então minha teoria do segundo andar provou-se verdade. Não havia muito lá, apenas um rudimentar armário, onde estavam penduricados vários frascos, folhas, ervas e miçangas, e uma mesa, precária, feita de madeira, com duas cadeiras. Sentei-me, e logo o eremita juntou-se a mim, trazendo duas pequenas cuias em mãos, estas preenchidas por um líquido esverdeado.

- Chá. - Explicou ele.

- Grato. - Agradeci, tomando uma das cuias e bebendo de bom grado. Era, de fato, chá, e estava muito bom.

- O que um jovem como você faz num pedaço de terra condenado como esse, meu filho? - Perguntou meu interlocutor.

- Estou só de passagem. - Expliquei. - Sou um explorador.

- Interessante. - Murmurou o eremita.

- Vivo em Lancashire. Mas quase não paro em casa.

- Não gosta de uma vida calma, então?

- Não muito. - Admiti. - Mas tenho meus momentos.

- Ah, eu simplesmente desisti, essa sociedade maluca. A melhor coisa que fiz foi embarcar naquele navio. Lady Vain II, hah! - Zombou Roosvelt. - Frágil como um pedaço de papel. Naufragou há alguns anos atrás, e eu consegui escapar em um bote com mais uns dois. Acabamos remando até essa ilha, e eu moro aqui desde então. Os outros dois, idiotas, morreram rápido. Um teve uma infecção fatal, e o outro, comeu uma planta que não devia.

- Ninguém nunca veio investigar sobre esse naufrágio? - Indaguei.

- Ah, já devem ter vindo. Mas essa ilha é desconhecida pelo mapa. As pessoas devem achar que é inabitada. Ou, pelo menos, por humanos. Além disso, o Lady Vain encalhou longe daqui. Foram uns  bons dias de mar até chegarmos na praia. Isso já tem umas boas décadas.

- E você não tem vontade de voltar?

- Sinceramente, não sei se eu conseguiria. Já estou tão acostumado com minha vida pacata aqui, afastado de tudo. Além disso, estou velho. Vivi uma vida boa, e uma velhice excepcional. Mas agora, vamos deixar isso de lado. Me conte algumas novidades do mundo atual.

Então, passamos algum tempo discutindo amenidades. Falamos sobre a lua e os ministros, sobre o clima e os avanços tenológicos da humanidade. O assunto englobou até mesmo viagem no tempo. Por fim, vi que o sol já ia se por, e decidi encerrar minha conversa sem preliminares. Expliquei rapidamente ao divertido eremita de que eu havia há muito marcado com meus amigos de me encontrar com eles na praia e me despedi, agradecendo pelo chá e pela conversa. Ele me agradeceu igualmente, indicando o caminho mais rápido para a praia.

Após alguns minutos, eu já havia chegado ao meu destino. Dei uma última olhada para a orla, com um sorriso, e, quando questionado por meus amigos, expliquei para eles o ocorrido, no formato de anedota. Eles não me acreditaram, e inclusive mencionaram que o naufrágio da Lady Vain não havia deixado sobreviventes. Fiz pouco caso, pois estava tão feliz que não queria me estressar. Partimos naquele final de tarde, impulsionados pelo vento gelado.

Encontrar Roosvelt foi uma honra e um privilégio. De vez em quando pego-me pensando em como ele deve estar agora. Se está bem, ou mesmo vivo. Não visito aquela ilha desde então, mas alguma coisa me diz que não preciso me preocupar com ele. Ele se vira.

Um comentário:

  1. Mais um texto espetacular, como sempre.
    Ótimas descrições de cenário. Fizeram com que eu me sentisse parte da história. Não pude deixar de lembrar do Gandalf quando descreveu Roosvelt.
    Também achei interessante que a busca por aventura levou Baker ao mesmo lugar onde Roosvelt encontrou apenas calma e paz de espírito.

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