quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Seis pistolas e uma adaga

Museus são ambientes tão informativos e interessantes que não entendo como alguém pode não gostar destes.
Lá estava eu, ponderando em um largo saguão, vazio, a não ser por mim e pelos objetos em exposição. Estava observando especificamente um conjunto de pistolas do século XVII. Haviam envelhecido muito mal - estavam cheias de manchas e pareciam muito malcuidadas, como se seu dono, na época, não se importasse muito com elas, e os restauradores do museu, muito menos. Estavam deitadas sobre uma mesa branca, enfileiradas e cobertas por uma vidraça linda e clara como um lago cristalino e cheio de sonhos. Ao lado delas, havia uma adaga de combate, guardada em uma bainha de couro muito gasta.

- Fico pensando quantos pescoços essa adaga já perfurou - Disse uma voz ao meu lado, pegando-me de surpresa.

Girei nos calcanhares e virei-me para ver quem seria essa figura, que parecia ter saído das sombras, e agora comentava casualmente comigo à respeito de armas brancas. Era um homem muito idoso, um pouco acima do peso. Tinha um cabelo branco e fofo como algodão, olhos azuis elétricos, saltados e profundos. Seu rosto enrugado era bondoso, e um pequeno sorriso estava emoldurado em sua pele macilenta. O homem, curioso, estava à minha direita, apoiado em sua bengala para ver a vitrine mais de perto.

- Desculpe. - Balbuciei. - Não vi o senhor chegando.

- Ora, não se preocupe com isso. - Respondeu o homem, com uma voz grave, porém amigável - E não precisa me chamar de "senhor".

- Certo. Como se chama? - Perguntei

- Não me chamo. - Respondeu ele, com um risinho travesso - Meu nome não importa muito. Sou o Curador desse museu. Bom, um deles. A maioria dos outros não liga muito pra esse lugar, e está ocupada demais lendo revistas, tomando café com bolachas ou dormindo em expediente. Mas eu sou o Curador principal. O original, caso você assim prefira. Esse museu é um lugar incrível. Estou sempre dando uma volta pelas minhas salas favoritas. Temos de tudo aqui, sabe. Armas, armaduras, estátuas, pinturas... tem umas que são tão detalhadas que parecem até que são momentos reais capturados numa tela.

- Tem realmente algumas coisas muito interessantes aqui - Concordei. - Senhor... curador.

- Assim está melhor. - Respondeu ele, com aquele sorriso tão travesso que parecia ter sido tirado de um duende trapaceiro de contos de fadas, mas ainda assim, transmitia simpatia.

- Estou só de passagem por essas cidade. - Falei. - Sou um viajante. Há alguns meses atrás, decidi sair da rotina para ver algumas coisas novas. Amanhã estou zarpando para a Irlanda.

- Lugar bonito - Comentou o Curador - Apenas uma dica. Trevos de quatro folhas e coquetéis molotov, combinação perigosa.

Não entendi o que ele quis dizer com isso, mas acenei com a cabeça demonstrando compreensão. Essa é uma das minhas piores manias. Quando estou divagando em meus devaneios e acabo não entendendo algum comentário de meus interlocutores, eu simplesmente aceno a cabeça.

- Já parou para pensar que você é História viva? - Perguntou o Curador.

- História viva? - Repeti.

- Sim. - Respondeu o mesmo. - História viva. Tudo o que está aqui, veja você, fez parte do passado. Roupas que alguém utilizou na renascença italiana, armas de combate da idade média, artefatos tribais de séculos atrás... em suas respectivas épocas, ninguém nunca pensou que aquilo poderia vir a ser história. Você acha que Van Gogh um dia sequer pensou que viria a ser um dos pintores mais famosos de todos os tempos?

- Não. - Disse, simplesmente.

- Não. - Afirmou o Curador. - Van Gogh nunca sequer vendeu um quadro na vida. Ele jamais pensou que entraria para a História. Você já pensou que pode entrar para a História? Ela é feita de gente comum, como eu e você. Nem todas as figuras mundialmente conhecidas são extraordinárias ou autores de façanhas notáveis. São apenas pessoas que viveram uma vida comum, sem saber que, indiretamente, contribuíram com o andamento da humanidade.

Parei para pensar nas palavras daquele senhor de voz grave e cabelos de algodão.

- Essa é uma filosofia de vida bem comovente. - Falei, após alguns segundos.

- De fato é. - Concordou o Curador, com um tom de voz satisfeito, como se estivesse feliz com o fato de que alguém concordara com sua opinião. - Agora, com licença. Você estará muito ocupado logo logo, creio eu.

Ergui uma sobrancelha.

- O que quer dizer com isso? - Perguntei, curioso.

Ele exibiu seus dentes amarelados em um último sorriso.

- Eu não gosto de alterar o curso da história. Continue sendo quem você é. Isso pode ter uma importância vital para o futuro.

Um comentário:

  1. Geralmente não lembramos disso, que fazemos parte da história. E melhor, QUE ESTAMOS FAZENDO HISTÓRIA AGORA. E não só de forma geral, mas na nossa própria vida. Somos responsáveis por escrever nossa própria história.
    (Adorei o conto. Nem preciso dizer que adoro o jeito que você escreve.)

    ResponderExcluir