quarta-feira, 27 de agosto de 2014

A capa amarela

Desde muito moço, estou habituado a acordar cedo. Não costumo dormir muito - geralmente deito onze e meia da noite e acordo cinco da manhã. Mas isso já é, para mim, o suficiente.

Visto-me no escuro, tendo como iluminação natural apenas a fraca luz da aurora do dia, enquanto ajeito o nó de minha gravata no espelho. Saio de casa e caminho pela calçada, olhando o rosto da cidade logo de manhã, quando é mais belo. O barulho oco de meus passos ecoa pelo chão, fazendo com que pombos voem para longe enquanto folhas deslizam, empurradas pelo vento.

Há um pequeno teatro, por onde costumo passar quase que diariamente, por encontrar-se no meio de minha trajetória diária. Parece estar sempre vazio e fechado, mas em frente a ele, encontrava-se sempre um sujeito.

Tratava-se de um homem alto, olhos verdes intensos e cabelos muito pretos penteados para trás. Vestia roupas muito gastas, como as de um príncipe de peças teatrais - presumia eu que era um dos figurinos velhos de algum espetáculo. Tudo estava muito encardido, de seus sapatos as abotoaduras das mangas do paletó, mas, em contraste com aquele figurino envelhecido, ele trajava uma capa amarela, que era tão brilhosa e elegante que dava beleza e um ar nobre àquela figura, ofuscando a fantasia velha e o rosto cansado. Parecia, de fato, um príncipe dinamarquês.

Estava sempre lendo alguns papéis em voz alta, fazendo com que a maioria das pessoas que por ele passassem o olhassem de forma pouco amistosa, julgando-o mentalmente. Mas eu, que tinha um olhar estanque, gostava de reparar no que ele estava lendo.

Era um texto muito bonito. De início, não sabia se era uma passagem da bíblia, um monólogo teatral ou simplesmente trechos de um poema. Mas soava muito bem, e a melhor parte de minha trajetória diária era, sem dúvida, ouvir as palavras daquele homem.

- Ultimamente, não sei por quê - O homem proclamava em alto e bom tom, enquanto eu caminhava em direção ao teatro -  perdi toda a alegria, desprezei todo o hábito dos exercícios, e, realmente, tudo pesa tanto na minha disposição que este grande cenário, a terra, me parece agora um promontório estéril; este magnífico dossel, o ar, vede, este belo e flutuante firmamento, este teto majestoso, ornado de ouro e flama, não me parece mais que uma repulsiva e pestilenta congregação de vapores.

A oratória dele era muito boa, e seu tom de voz voraz chamava a atenção de quem passava (infelizmente, nem sempre, de maneira positiva). Após algumas semanas, eu já sabia de cor o texto que ele lia.

- Que obra de arte é o homem! Como é nobre na razão! - Gritava ele, na segunda parte do monólogo, que era recitada com mais vontade e energia do que a primeira. - Como é infinito em faculdades! Na forma e no movimento, como é expressivo e admirável! Na ação, é como um anjo! Em inteligência, é como um deus! A beleza do mundo! O paradigma dos animais! E, no entanto, para mim, o que é esta quintessência do pó?

- O homem não me satisfaz - Murmurava eu, quando passava, em uníssono com o final do discurso daquela figura. - Não, nem a mulher também.

Um dia, intrigado, decidi tomar coragem de perguntar para o homem do que se tratava aquele texto.

Caminhei à passos largos, decidido, até o teatro, e, quando cheguei, fui surpreendido. Pela primeira vez em semanas, ele não estava lá. Mas havia algo diferente naquele teatro. Alguns sons pareciam sair de dentro dele, e, na fachada do pequeno prédio, um letreiro anunciava: "HAMLET".

Após erguer a cabeça e ler aquilo, sorri. Eu havia lido Hamlet quando era garoto, naturalmente, com propósitos letivos. Lembrava que o protagonista era uma figura brava, destemida e determinada.

"Não existe", pensei eu, "ninguém melhor para interpretar Hamlet do que o homem da capa amarela".

Nenhum comentário:

Postar um comentário