Dia 4
O navio continua vagando. Tem muita neblina e o vento frio corta o caminho do barco sem piedade. O gosto salgado da maré é constante em minha boca, enquanto as gotas espessas de água do mar atingem meu rosto.
Essa embarcação me pareceu estranha desde o começo. Por mais que aparentasse ser um cruzeiro civil, com destino às ilhas caribenhas, eu duvido que tal caminho esteja sequer sendo traçado pelo barco. O convés é estranhamente deserto, e eu não me lembro da última vez que vi alguém andando em qualquer parte do imenso navio. Cruzo-o de ponta a ponta, pelo exterior e pelo interior, e tudo o que ouço, além do barulho de meus passos e do som distante das ondas ricocheteando no casco do barco, é o silêncio macabro.
Dia 12
A vida aqui é assustadora. Todos os dias, de manhã, passo pelo restaurante e a mesa do buffet está impecavelmente arrumada. Assim que termino de comer, todos os alimentos desaparecem. A mesma coisa acontece nos horários de almoço e jantar.
Embarcar nesse cruzeiro fantasma foi a pior decisão que já tomei em minha vida. Já tentei sair, pulando para fora do convés, mas no momento em que atinjo o mar, acordo estranhamente em um cômodo aleatório do barco. Facas e outras armas brancas - ou objetos que servem como estas - também não causam efeito sobre mim. Tudo o que consigo são feridas indolores, que saram rapidamente.
Eu grito inutilmente por ajuda, dia após dia. Vocifero pedidos desesperados de socorro, erguendo meus braços e balançando peças de roupa na chuva, enquanto sou encharcada por ela, os cabelos grudando no rosto. Em circunstâncias normais, eu já teria ficado doente há muito tempo. Mas as coisas aqui acontecem de um jeito estranho. O único modo que encontro de manter minha sanidade é escrever nesse pequeno caderno.
Dia 31
Cada dia que passa, me conformo de que esse navio infernal não ruma para lugar algum. Todos os dias, tudo o que vejo do trajeto percorrido são mais e mais quilômetros de um mar escuro e tempestuoso, com um céu nublado e ventanias constantes, muitas vezes regadas por doses generosas de chuva. Minha teoria é de que morri, e este é meu purgatório. Devo admitir que nunca imaginei que a vida após a morte fosse tão desgraçada assim.
Não me lembro de ter feito nada tão execrável durante minha vida para merecer esse destino. Sempre fui uma pessoa razoavelmente boa. Fui justa em vida. Uma filha dedicada, uma irmã presente e uma aluna exemplar. Era elogiada nos meus empregos. Meus parentes sempre me tratavam com carinho durante o Natal.
O que eu fiz?
Dia 58
Não acredito num deus. Ou, pelo menos, não acreditava. Em cada momento de sofrimento e angústia que passo nesse barco traiçoeiro, sinto que minha teoria de que este é meu inferno é verdadeira. Então, faço aqui, um apelo pessoal. Se algum deus, em sua onisciência e onipresença, sabe que estou aqui, peço legitimamente minhas desculpas.
Sei que fui confusa em vida, e leviana no quesito religioso. Mas faço um apelo. Nem o pior criminoso da humanidade mereceria uma punição como essa. De todas as histórias de maldições que ouvi durante minha vida, nem mesmo o fardo do cruel Tântalo é tão pesado quanto o que carrego nas costas há mais de um mês.
Dia 115
Meu cotidiano é monótono, e eu não aguento mais. Dia após dia, faço uma repetição de ações que levam o nada à lugar algum. Sinto-me presa num eterno ciclo vicioso, sem fim, e tudo isso me dá vontade de morrer. Se estou morta, afinal, tudo o que eu queria é que a vida após a morte não fosse assim.
Talvez eu tenha apenas perdido minha sanidade. Eu não sei muito bem o que é esse navio, mas pode ser muito bem uma alucinação de minha mente sádica e distorcida. Na verdade, nem sei mais o que é. E não me importo.
Pra ser sincera, tudo o que quero é que isso tenha um fim. Não quero continuar nesse navio para toda a eternidade. Espero ansiosamente pelo dia em que ele irá atracar em algum porto bendito. Fantasio a sensação de descer as escadas, e correr pelas ruas da zona portuária da cidade mais próxima. E, sobretudo, voltar para casa. Não sei como, mas quero voltar. Só sei de uma coisa: De barco, não vou.
Dia 200
Cheguei, enfim, na última folha desse caderno.
Devo dizer que foi bom enquanto durou. Durante 200 dias de minha estadia nesse navio fantasma, essa foi a única atividade do dia que eu exercia sem ódio do mundo, e, sobretudo, de mim mesma. Escrever é algo que sempre me veio muito naturalmente, e arrependo-me de, durante minha estadia na Terra, não ter seguido com ela para o lado profissional.
Não sei o que vou fazer com esse caderno depois que eu acabar de escrever a última linha. Talvez eu o jogue no mar. Talvez, após isso, ele reapareça na mesma mesa onde eu o peguei pela primeira vez, com a tinta da caneta borrada pela água, ou totalmente em branco.
O barco continua seguindo seu rumo inalcançável. Posso estar ficando louca - se é que já não estou - mas eu poderia jurar que, hoje mais cedo, vi um tímido raio de sol escapando por uma fresta entre as nuvens carregadas. Não tenho certeza. Se tem uma coisa que aprendi durante este período em alto-mar é que não tenho certeza de absolutamente nada, apenas de uma coisa: o barco continuará navegando, e eu, aparentemente, estou fardada como a tripulante solitária dessa embarcação vazia.
Adeus, caderno. Foi bom enquanto durou.
GHSDAKSDHSDFHFKHGFKGFSD
ResponderExcluirVocê nunca tinha escrito nada em primeira pessoa por aqui que tivesse uma narradora feminina. Toda a construção da trama me causou uma sensação agradavelmente claustrofóbica (se é que isso é possível). Mesmo sendo breve, o texto fez com que eu me sentisse preso no navio. Pergunto-me até agora se devo ficar imaginando o que o navio era realmente ou se isso é o que menos importa.
Muito bom mesmo.