quinta-feira, 19 de março de 2015

Eles surgiram

Durante muito tempo, a humanidade ponderou sobre como seria nosso primeiro contato com vida extraterrestre. Ele não foi nada amigável.

Eles não chegaram em nosso planeta descidos de discos voadores. Na verdade, no começo, ninguém sabia como eles haviam chegado. Em um belo dia, como qualquer outro, - Uma quinta-feira, pelo que me recordo - eles simplesmente surgiram.

O exército naturalmente tentou exterminá-los, porém falhou. Balas não perfuravam a pele dos visitantes interplanetários, que era curiosa e digna de uma análise profunda. Os extraterrestres não eram nada parecidos com nada do que havíamos imaginado antes. Seu tamanho, a textura de sua pele, sua aparência física, seus membros, seus sons. Oh, os sons. Eles emitiam sons tão abomináveis que prefiro não compartilhar uma descrição para tais.

Não demorou muito para eles começarem a matar os seres humanos. Muitos se escondiam, dentro de casa ou em casamatas, mas não era o suficiente. Minha própria sobrevivência, na verdade, foi conquistada através de uma série de fatores, incluindo sorte e oportunidades pontuais. Estar no lugar certo e na hora certa foi o que salvou minha vida diversas vezes durante a série de episódios que ficou conhecida como "A Invasão".

Alguns meses depois que tudo acabou, descobriram que eles haviam chegado até nós através de um portal interdimensional. Pense como se dois cômodos fossem separados por uma fina parede, e um habitante particularmente agressivo de um dos cômodos quebrasse essa parede e invadisse o outro. Foi exatamente isso o que aconteceu. Os invasores eram provenientes de uma dimensão diferente, a qual (felizmente) nunca tivemos acesso, e não temos a mínima ideia de como seja. Esse portal fechou-se misteriosamente após a chegada dos viajantes interdimensionais, prendendo-os em nosso mundo.

A morte deles foi engraçada. As pessoas tentaram de tudo, desde artilharia pesada até água potável, para derrotá-los. E a fraqueza deles estava na mais comum das doenças humanas: a gripe comum. O vírus foi espalhado assim que isso foi descoberto, e, assim, todos eles morreram, seus cadáveres desaparecendo. Alguns dizem que estão sendo estudados pela ciência, outros, que os corpos se desmancharam em cinzas, e ainda há os que alegam que eles se teletransportaram de volta para sua dimensão natal.

Porém, infelizmente, a humanidade não teve um final feliz. Durante sua estadia em nossa dimensão, os invasores nos transmitiram uma doença. Um vírus incurável, e mortal. Depois de algumas semanas, já havia tomado o planeta inteiro. É uma morte lenta. O corpo vai se decompondo, enquanto o indivíduo ainda está vivo. Os que não morreram no ataque deles durante A Invasão, morreram graças ao vírus. E ainda há uma terceira categoria de pessoas que ainda vivem, mas vivem mortos. Os últimos humanos já tem a carne de seu corpo tão podre quanto suas mentes.

E, na morte, enquanto os cadáveres mais recentes apodrecem nas rodovias manchadas pela sujeira, os remanescentes condenados da raça humana aguardam, conformados, por seu fim. Eu sou um deles. Minha aparência física foi deformada pela doença de modo tão hediondo que não posso mais me olhar em um espelho sem ter que reter o impulso de socá-lo, dominado pela cólera. As ruas são vazias, e, de vez em quando, encontro algum outro humanoide revirando uma lata de lixo em busca de alimento. Afinal, a pior sensação do mundo deve ser morrer de barriga vazia.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Óculos escuros

Eram três da manhã em uma pequena cidade portuária que o mundo esqueceu. Em um pequeno e mal-iluminado bar, no centro da cidade, um homem por volta dos 60, 65 anos cantava Don't Stop Believin' numa máquina de karaoke.

Em uma mesinha nos fundos, um homem mais jovem assistia tudo preguiçosamente, brincando com seu copo de chá gelado.

- Just a small town girl... - Cantava o homem mais velho, a voz embriagada. Uma versão instrumental da música saia pelos auto-falantes da máquina, para ritmar a cantoria. Legendas amarelas, com letrinhas dançantes, mostravam a letra da música.

O homem da mesa ao fundo tomou um gole de seu chá gelado. (Que, nessa altura, poderia ser chamado apenas de "chá") Olhou de relance para o velho cantando. Quando seu campo de visão voltou para sua mesa, onde ele estava inicialmente sozinho, um outro homem estava sentado ao seu lado. Ele não o viu chegando ali.

O homem misterioso usava óculos escuros, apesar de ser noite e eles estarem em um ambiente interno. Para o homem do chá gelado, apenas dois tipos de pessoas usariam óculos escuros nessas condições: cegos e criminosos. O desconhecido trazia seu cabelo preto penteado cuidadosamente para trás, provavelmente com algum tipo de brilhantina, e vestia um terno preto, como qualquer assaltante clichê de filmes de assalto à banco.

- Até que ele não está tão mal. - Disse o desconhecido. - Mas você precisava ver uma moça que eu conhecia cantando Space Oddity. Isso foi na Islândia, eu acho. Ou Groelândia. Dois países que eu nunca mais pretendo visitar.

O homem do chá gelado olhou para o estranho por alguns segundos, sem saber ao certo o que fazer ou dizer.

- Eu acho que não nos conhecemos. - Disse, por fim.

- Não mesmo. - Admitiu o outro. - Nomes. Não são minha praia. Mas pode me chamar de... hm... Tom. Eu gosto de Tom. Tom soa bem. Como em "Major Tom".

E estendeu sua mão.

- Eu sou Dave. - Apresentou-se o homem do chá gelado, apertando a mão de "Tom". - Eu não quero ser mal educado, mas... o que você está fazendo na minha mesa?

Dave era um cara grande. A maioria das pessoas, de vista, diria que ele é durão, pelo fato dele ser meio parecido com gente como o Jason Statham. Mas ele, na verdade, era um cara bem pacato. E estava meio embasbacado com a situação, algo notado por Tom.

- Ah, não se importe comigo. - Falou Tom, em um tom displicente. - Eu faço isso as vezes. Entro em bares, sento na mesa de um desconhecido e converso um pouco com ele.

Dave ergueu uma sobrancelha. Uma garçonete passou pela mesa.

- Com licença. - Solicitou Tom. - Eu gostaria da cerveja mais cara da casa. E um chá gelado para o cavalheiro.

A garçonete anotou e desapareceu no bar mal iluminado.

Dave abriu a boca, erguendo o indicador.

- Não esquenta. - Falou Tom, como se pudesse ler o pensamento do outro. - Eu pago.

- Obrigado. - Murmurou Dave, que já havia desistido de discutir.

- Don't stop, believin'... hold on to that feeeeeeeling... - Cantava o velho na máquina de karaoke.

- O que você faz da vida, Dave? - Perguntou Tom.

- Eu realmente não sei se deveria confiar em você. - Admitiu Dave, sincero.

- Eu pareço o tipo de pessoa que não é confiável? - Perguntou Tom.

- Pra ser sincero, sim. - Admitiu o outro. A garçonete deixou sobre a mesa uma lata de chá gelado, um copo com gelo e uma garrafa verde de cerveja.

- Ah, o que é? O terno? Os óculos escuros? - Indagou o outro.

- Os óculos escuros. - Admitiu Dave. - Quer dizer, óculos escuros de noite? Você é cego?

- Não. - Respondeu Tom, secamente. Então, tirou os óculos escuros. Com os dedos, fechou as pernas, e pendurou-o na gola da camisa.

Dave olhou por alguns segundos. Ele havia captado a mensagem, algo que foi facilmente percebido pelo outro, que casualmente colocou os óculos escuros de volta no rosto.

- O que você faz da vida, Dave? - Perguntou Tom, novamente.

- Eu, eu... - Gaguejou ele. - Sou taxista.

Tom ergueu a sobrancelha.

- Você não deveria estar na rua?

- Eu não sou aqueles taxistas de rua. - Explicou Tom. - Eu sou, tipo, aqueles caras que a companhia chama quando tem uma família grande com muitas malas chegando de viagem. Eu dirijo um carro grande.

- Entendi. - Disse Tom. - É um bom emprego. Eu gosto de dirigir. O rádio do meu carro está com um problema, e isso é uma merda. Mas tirando isso, o veículo continua ótimo.

Dave assentiu com a cabeça, enquanto observava o velho do karaoke, que já cantava outra música: algo que se parecia com Dancing Queen, porém era difícil ter certeza. A voz do velho estava embriagada demais.

O velho tropeçou no próprio pé e caiu no chão. Alguém o arrastou para longe da máquina de karaoke, e outra pessoa eventualmente assumiu seu lugar na máquina, selecionando uma música diferente. Tratava-se de uma jovem mulher, com cabelos muito castanhos presos em um rabo de cavalo ligeiramente complicado.

Tom terminou sua cerveja. Ele puxou algo do bolso: sua carteira. De lá, puxou algumas notas de cinquenta e deixou na mesa.

- Aqui. - Disse ele. - Isso deve pagar pela cerveja e pelo chá gelado. E tem um pouco mais, eu acho. Compre alguma coisa legal.

Dito isso, levantou-se, saiu pela porta do bar e desapareceu.

Dave então reparou no refrão da música que a mulher de cabelos castanhos cantava: "I wear my sunglasses at night..."

Dave nunca mais viu Tom, e nunca mais pediu para outra pessoa tirar seus óculos escuros.

domingo, 28 de dezembro de 2014

Cabeça Vazia

Um velho ditado diz "Cabeça vazia é a oficina do Diabo". Não acredite nessa baboseira. A oficina do Diabo na verdade fica no Rio de Janeiro, capital, e é altamente equipada com diversos aparelhos de ar-condicionado de última geração, cruciais para a sobrevivência nesse calor.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

O Silva

Vinha vindo, pelas ruas chuvosas do Engenho Novo, o Silva.

O Silva era um homem jovem, mas seu rosto magro e encovado, encapado por uma pele pálida macilenta, coberta por uma castanha barba à fazer, fazia com que ele parecesse bem mais velho. Mechas de seu cabelo cobriam o rosto, empapadas pela chuva e pelo suor. Estava triste, o Silva. Era pobre. Há um mês, havia se divorciado. Há uma semana, havia sido demitido de seu emprego. Vivia em uma casa pequena e alugada, e logo o dinheiro para manter-se ali acabaria. Procurara incessavelmente por trabalho em toda a cidade do Rio, mas sua busca havia sido infrutífera.

Rumava à um velho prédio abandonado. O Silva não sabia, mas há pouco tempo atrás, aquela construção abrigara uns dez, onze, jovens encortiçados. Porém eles haviam sido expulsos, pois agora esse prédio seria demolido. Mais específicamente, nessa mesmíssima noite. E era por isso que ele estava ali.

O quarteirão estava fechado para a demolição do prédio. Mas isso não foi o suficiente para impedir o Silva de entrar no local. Haviam supervisores fazendo uma ronda pela área para garantir que ninguém entrasse e se machucasse. Escondido, o Silva pegou uma pedra no chão e lançou-a em uma parede distante de onde ele estava escondido. O supervisor que estava por perto ouviu o barulho da pedra se chocando, e dirigiu-se ao local de onde o barulho havia se manifestado. Isso deu tempo suficiente para o Silva esgueirar-se, pular um cavalete e entrar na velha construção.

O Silva já não era mais um menino, mas tinha uma agilidade digna da de um capitão da areia. Em meio à degraus faltando e buracos no assoalho, chegou no terceiro - e último - andar do prédio. Arrancou uma porta emperrada com o pé de cabra que trazia consigo, e entrou em uma saleta de paredes cobertas de limo. Largou o pé de cabra no chão, e sentou-se, encostado num canto, e chorou. Mas chorou baixo, pois sabia que se alguém o ouvisse, ele seria tirado dali.

Então, olhou para cima, o rosto vermelho e os olhos miúdos e eclipsados de lágrimas. Conseguia vagamente enxergar, entre os pedaços do teto onde faltava cobertura, as estrelas. Por pior que nosso dia esteja sendo, para os outros, ele pode estar sendo apenas mais um dia normal, como qualquer outro. E era nisso que o Silva pensou ao olhar para as estrelas daquela noite embaçada.

Ele ouviu um movimento lá em baixo. Os homens estavam terminando os preparativos para a demolição. Fungou e levantou-se. Tirou o agasalho marrom velho e jogou-o num canto. Estalou os dedos - uma pequena mania que tinha desde pequeno, e uma das poucas coisas prazerosas que lhe haviam restado - e depois esticou os braços. Então, fechou os olhos.

O chão sob seus pés começou a tremer. Sentia pedaços de madeira e concreto caindo por perto, abrindo buracos no piso. Então, um baque em sua cabeça. Não sentiu mais nada.

O Silva acordou, não sabia quanto tempo depois, em uma sala de hospital, deitado em uma maca. Praguejou baixinho. Nem morrer ele conseguia fazer direito. Então percebeu que uma pessoa que não conhecia estava sentada ao lado da maca, o observando.

Era um homem de feições gentis. Assim como o Silva, também tinha uma barba castanha por fazer, e olhos muito escuros, mas seu rosto era corado, apesar de não muito cheio. O cabelo era preso em um rabo de cavalo, e o corpo esguio vestia roupas simples.

- Ah, você acordou. - Disse o homem. - Os médicos estavam duvidando. E eu também. Mas fico feliz que você conseguiu.

- Desculpa, eu, eu... eu acho que não te conheço. - Murmurou o Silva, piscando, os olhos desacostumados com a luz forte da sala.

- Não conhece mesmo. - Admitiu o desconhecido, estendendo a mão. - Meu nome é Eduardo.

O Silva não apertou a mão.

- Olha, eu não quero ser mal-educado, mas... o que você está fazendo no meu leito? - Perguntou ele.

- Eu na verdade tinha vindo aqui visitar minha avó. - Explicou Eduardo. - Há alguns corredores de distância daqui. Mas ela morreu há algumas horas atrás. Eu estava indo embora, quando entreouvi uma conversa entre alguns médicos sobre você. Disseram que não havia ninguém contigo aqui. Então menti: disse que eu era um primo seu, e que queria ver-lo.

Ambos ficaram constrangidos, em silêncio, por alguns segundos.

- Por que? - Perguntou o Silva, enfim.

- Porquê ninguém deve morrer sozinho. - Respondeu Eduardo, sombrio. - Ainda bem que você conseguiu voltar.

- É, eu não acho. - Resmungou o outro, em resposta.

Um médico entrou na sala.

- Ah, excelente! - Disse o médico, com um sorriso. - Está acordado, então.

- Infelizmente. - Ralhou o Silva. - Quanto tempo eu tenho que ficar por aqui até que eu tenha alta?

O médico checou alguma coisa na prancheta que trazia consigo.

- Na verdade, mais algumas horas. Você deu sorte. Está quase sem nenhum arranhão. A única coisa que aconteceu foi escombro, que atingiu sua cabeça, te nocauteando e formando um galo. Depois, você caiu de alguns andares, mas, pelo que consta aqui, uma pilha de entulho amorteceu o impacto. Então, alguns escombros maiores te cobriram, impedindo que você fosse atingido por outras coisas. Se isso não é sorte, não sei qual é o nome.

- Maldição. - Sussurrou o Silva, para si mesmo.

O médico saiu do quarto, e Eduardo o seguiu, acenando em despedida.

Após uma ou duas horas (o Silva era péssimo em medir a passagem do tempo), o Silva foi liberado do hospital. No caminho da saída, não pode deixar de reparar como este estava vazio.

Saiu pela porta da frente, e, para sua surpresa, se deparou Eduardo sentado nos degraus. Aos seus pés, uma embalagem, com seis garrafas de cerveja.

- Ei! - Saudou Eduardo, alegre.

- ...Eles te deixam beber cerveja na escada do hospital? - Perguntou o outro, sentando-se ao lado.

- Normalmente, acho que não é permitido. Mas o movimento está fraco hoje. - Respondeu Eduardo, abrindo uma garrafa. - Você bebe?

- Normalmente, não. Mas depois do que aconteceu comigo, acho que eu beberia até água sanitária. - Disse o Silva, estendendo o braço para tomar a garrafa.

Eduardo abriu outra para si.

- Qual é o seu nome? - Indagou ele, por fim. - Ouvi uma conversa entre os médicos, mas eles foram meio vagos nos detalhes. É Silva, não é?

- Sim. - Afirmou o mesmo. - Lázaro.

- Lázaro Silva. - Repetiu Eduardo, como se gostasse do tom do nome. E deu uma risadinha.

- O que foi? - Perguntou o outro.

Eduardo deu um gole demorado.

- Você já leu a bíblia?

- Não. - Admitiu o Silva.

- Achei engraçado quando você falou o seu nome, pois tinha um Lázaro na bíblia.

- Bom, tem um monte de nomes na bíblia.

- Realmente. Mas acho que nenhum que tenha traçado um paralelo tão interessante. Uma coincidência, eu diria.

- O que?

- O médico disse que você foi achado entre os escombros de um prédio que havia sido demolido, certo?

- Sim.

- Você não deveria estar lá.

- Não mesmo. Eu havia ido para me suicidar.

- E é por isso mesmo que eu acho tão interessante esse paralelo. Na bíblia, Lázaro voltou dos mortos.

O Silva deu um gole e limpou a boca com as costas da mão.

- Você tá inventando isso.

- Não estou. - Respondeu o outro.

- Olha, quem é você, afinal?

Eduardo estendeu a mão.

- Que tal um amigo?

O Silva olhou o sujeito de cima a baixo. Então, apertou sua mão.

- Que seja. Você me conheceu num período muito estranho da minha vida.

- Bem, vamos mudar isso.

- Você sabe de alguém que tenha um emprego? Se eu atrasar mais um mês de aluguel acho que o proprietário da minha casa corta fora minha cabeça.

- Onde você mora?

- Na rua Matacavalos.

- Então, eu conheço esse cara que trabalha no necrotério. Eles estão precisando de um faxineiro pro período da tarde.

O Silva fez cara feia.

- Faxineiro?

- Eles pagam bem. - Garantiu Eduardo

- ...me passa o telefone desse seu amigo, por favor. - Disse o Silva, por fim.

- Pode deixar.

Eles olharam para um pátio, que ficava do outro lado da rua. Nele, crianças brincavam alegremente, sem saber do que o amanhã lhes reservava.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Garis, garis piratas, catadores

Dois jovens de 17 anos conversam em um restaurante.

- Deus, finalmente o ano letivo vai acabar.

- Ah, sim. Não aguento mais.

- Formatura, então?

- Sei não, cara. Tô com merda até o pescoço. Provavelmente vou ficar de recuperação numas quatro matérias.

- Acho que vou ficar numas três ou quatro também.

- Eu não entendo física há uns dois anos. Pra falar a verdade, nem sei como passei ano passado.

- Acho que o professor teve pena de ti.

- Provavelmente o professor teve pena de mim.

- Há quanto tempo estamos na escola?

- Se você fizer a conta... uns dez, onze anos?

- Onze? Não são doze?

- A alfabetização não conta.

- Claro que conta!

- Pelo amor de deus, na alfabetização a gente só colore o mapa no Brasil e aprende a ter uma caligrafia decente.

- Tá, você tem razão.

- Isso não tá certo, cara. Passamos toda nossas vidas encarcerados na escola.

- Não se preocupa com isso, Leo. Depois ainda tem mais uns anos de faculdade, algumas décadas de trabalho, e, quando finalmente tiver uma folga permanente, você vai ser velho demais pra poder aproveitar a vida.

- Wow... meio deprimente, se você parar pra pensar.

- Você acha?

- Eu acho. Por mim eu largava os estudos e ia, sei lá, pintar quadros na praia, ou qualquer uma dessas coisas que lhe dá uma liberdade maior. Mas minha mãe iria me matar.

- É, e você provavelmente estaria com fome e dormindo em uma caixa de papelão na rua após um mês.

- Ugh. Isso é o que eu odeio na escola. É tão essencial. Você não pode fazer nada na vida se não tiver um pedaço de papel dizendo que você sabe fazer bháskara. As vezes a vontade é largar tudo e ir ser gari.

- Você precisa ter ensino médio completo pra ser gari.

- Que?

- É sério.

- Cê acabou de inventar isso.

- Não inventei, não. Pega o celular e procura aí.

- Isso não faz sentido nenhum.

- Por que não faz?

- Pra que eu teria que saber bháskara sendo um gari?!

- Eu não sei. Mas isso é lei.

- Aff. Aposto que essa é uma daquelas leis que ninguém respeita.

- Claro que respeitam. Garis são funcionários públicos. Eles literalmente trabalham pro governo. Não dá pra burlar.

- Sim, mas nem todo gari é registrado.

- Que?

- Você sabe, os garis piratas. Aqueles que passam na praia com sacos de plástico, catando as latinhas na areia.

- Eles não são garis, são catadores.

- "Catador" é só de lixo.

- E o que eles tão fazendo?

- Não deixam de estar catando lixo, mas a nomenclatura é diferente. Você me entende. Catadores são tipo aqueles caras que estão prestando serviços comunitários.

- E o que difere ele de um gari?

- O gari ganha um salário.

- Mas os dois estão fazendo exatamente a mesma coisa. O que não pode se dizer dos caras na praia, que catam somente latas e garrafas.

- Olha, eu me perdi no assunto.

- Deixa pra lá. Olha, tua torta tá chegando.

- Ah, finalmente.

- Nossa, cê vai comer tudo isso de sobremesa?

- Que foi? Tô com fome. Ah, a conta veio junto.

- Vamos rachar?

- Pode ser. Mas deixa eu comer a torta primeiro. Depois vemos isso com calma.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Diário de Bordo

Dia 4

O navio continua vagando. Tem muita neblina e o vento frio corta o caminho do barco sem piedade. O gosto salgado da maré é constante em minha boca, enquanto as gotas espessas de água do mar atingem meu rosto.

Essa embarcação me pareceu estranha desde o começo. Por mais que aparentasse ser um cruzeiro civil, com destino às ilhas caribenhas, eu duvido que tal caminho esteja sequer sendo traçado pelo barco. O convés é estranhamente deserto, e eu não me lembro da última vez que vi alguém andando em qualquer parte do imenso navio. Cruzo-o de ponta a ponta, pelo exterior e pelo interior, e tudo o que ouço, além do barulho de meus passos e do som distante das ondas ricocheteando no casco do barco, é o silêncio macabro.


Dia 12

A vida aqui é assustadora. Todos os dias, de manhã, passo pelo restaurante e a mesa do buffet está impecavelmente arrumada. Assim que termino de comer, todos os alimentos desaparecem. A mesma coisa acontece nos horários de almoço e jantar.

Embarcar nesse cruzeiro fantasma foi a pior decisão que já tomei em minha vida. Já tentei sair, pulando para fora do convés, mas no momento em que atinjo o mar, acordo estranhamente em um cômodo aleatório do barco. Facas e outras armas brancas - ou objetos que servem como estas - também não causam efeito sobre mim. Tudo o que consigo são feridas indolores, que saram rapidamente.

Eu grito inutilmente por ajuda, dia após dia. Vocifero pedidos desesperados de socorro, erguendo meus braços e balançando peças de roupa na chuva, enquanto sou encharcada por ela, os cabelos grudando no rosto. Em circunstâncias normais, eu já teria ficado doente há muito tempo. Mas as coisas aqui acontecem de um jeito estranho. O único modo que encontro de manter minha sanidade é escrever nesse pequeno caderno.


Dia 31

Cada dia que passa, me conformo de que esse navio infernal não ruma para lugar algum. Todos os dias, tudo o que vejo do trajeto percorrido são mais e mais quilômetros de um mar escuro e tempestuoso, com um céu nublado e ventanias constantes, muitas vezes regadas por doses generosas de chuva. Minha teoria é de que morri, e este é meu purgatório. Devo admitir que nunca imaginei que a vida após a morte fosse tão desgraçada assim.

Não me lembro de ter feito nada tão execrável durante minha vida para merecer esse destino. Sempre fui uma pessoa razoavelmente boa. Fui justa em vida. Uma filha dedicada, uma irmã presente e uma aluna exemplar. Era elogiada nos meus empregos. Meus parentes sempre me tratavam com carinho durante o Natal.

O que eu fiz?


Dia 58

Não acredito num deus. Ou, pelo menos, não acreditava. Em cada momento de sofrimento e angústia que passo nesse barco traiçoeiro, sinto que minha teoria de que este é meu inferno é verdadeira. Então, faço aqui, um apelo pessoal. Se algum deus, em sua onisciência e onipresença, sabe que estou aqui, peço legitimamente minhas desculpas.

Sei que fui confusa em vida, e leviana no quesito religioso. Mas faço um apelo. Nem o pior criminoso da humanidade mereceria uma punição como essa. De todas as histórias de maldições que ouvi durante minha vida, nem mesmo o fardo do cruel Tântalo é tão pesado quanto o que carrego nas costas há mais de um mês.


Dia 115

Meu cotidiano é monótono, e eu não aguento mais. Dia após dia, faço uma repetição de ações que levam o nada à lugar algum. Sinto-me presa num eterno ciclo vicioso, sem fim, e tudo isso me dá vontade de morrer. Se estou morta, afinal, tudo o que eu queria é que a vida após a morte não fosse assim.

Talvez eu tenha apenas perdido minha sanidade. Eu não sei muito bem o que é esse navio, mas pode ser muito bem uma alucinação de minha mente sádica e distorcida. Na verdade, nem sei mais o que é. E não me importo.

Pra ser sincera, tudo o que quero é que isso tenha um fim. Não quero continuar nesse navio para toda a eternidade. Espero ansiosamente pelo dia em que ele irá atracar em algum porto bendito. Fantasio a sensação de descer as escadas, e correr pelas ruas da zona portuária da cidade mais próxima. E, sobretudo, voltar para casa. Não sei como, mas quero voltar. Só sei de uma coisa: De barco, não vou.


Dia 200

Cheguei, enfim, na última folha desse caderno.

Devo dizer que foi bom enquanto durou. Durante 200 dias de minha estadia nesse navio fantasma, essa foi a única atividade do dia que eu exercia sem ódio do mundo, e, sobretudo, de mim mesma. Escrever é algo que sempre me veio muito naturalmente, e arrependo-me de, durante minha estadia na Terra, não ter seguido com ela para o lado profissional.

Não sei o que vou fazer com esse caderno depois que eu acabar de escrever a última linha. Talvez eu o jogue no mar. Talvez, após isso, ele reapareça na mesma mesa onde eu o peguei pela primeira vez, com a tinta da caneta borrada pela água, ou totalmente em branco.

O barco continua seguindo seu rumo inalcançável. Posso estar ficando louca - se é que já não estou - mas eu poderia jurar que, hoje mais cedo, vi um tímido raio de sol escapando por uma fresta entre as nuvens carregadas. Não tenho certeza. Se tem uma coisa que aprendi durante este período em alto-mar é que não tenho certeza de absolutamente nada, apenas de uma coisa: o barco continuará navegando, e eu, aparentemente, estou fardada como a tripulante solitária dessa embarcação vazia.

Adeus, caderno. Foi bom enquanto durou.

domingo, 19 de outubro de 2014

O Velho da Árvore

Em anos de treinamento como escoteiro durante minha infância, e mais um estendido período de expedições e treinamento em bosques e selvas, eu era convencido de que poderia cruzar qualquer caminho selvagem sem ficar impressionado com absolutamente nada. Ledo engano.

Era um belo dia de verão, daqueles em que o sol em pico esquenta a cabeça, fazendo o suor gotejar entre os fios de cabelo, e eu abria meu caminho em meio a uma mata virgem. Sentia os mosquitos avançando em minhas pernas, com o ânimo e a voracidade grandes como os de um homem que há muito está no deserto encontrando um oásis. Em meus braços, cortes provenientes de galhos, espinhos e pedras afiadas que cruzavam meu caminho. Os ombros doloridos de segurar minha mochila e os pés cansados depois da longa empreitada. Mas nada daquilo me abalava, pois eu já havia traçado meu objetivo, e estava determinado em alcançá-lo.

A praia do outro lado era minha meta. Era uma ilha relativamente pequena, do tamanho de um estado modesto de um país de terceiro mundo, e era consideravelmente desconhecida fora da região - caso eu me lembre bem, sequer possuía um nome. Eu estava lá simplesmente por diversão. Desde muito jovem, sempre fui um viciado em adrenalina. Depois de um tempo, montanhas russas e atrações banais já não me eram o suficiente, então, com o dinheiro que me sobrava, ano após ano, eu me metia nessas modestas aventuras em meus períodos de recesso.

Foi quando, de repente, me deparei com uma trilha, o que me causou estranheza. Eu acreditava ser pioneiro em desbravar aquela rota. O caminho rudimentar, simplesmente um espaço aberto entre a vasta gama de plantas, era tímido, mas notável. Alguém já havia estado ali antes. Claro, meus companheiros estavam na praia, me esperando, mas eles haviam chegado lá pelos aeroplanos. Decidi, então, dar ao meu facão um merecido descanso após alguns quilômetros de mato cortado e seguir pela trilha já estabelecida.

Peguei-me surpreso ao ver que, no fim da trilha, havia uma clareira. Vista de fora, a mata da ilha parecia extremamente fechada, e aquilo me embasbacou tanto quanto me agradou. Sentei em uma pedra ligeiramente menos limosa do que as demais e aproveitei para descansar um pouco. Respirei fundo, bebi uma água da garrafa que eu havia trago em minha mochila, amarrei os cadarços, que já estavam frouxos, e fiquei lá por alguns minutos, ouvindo os sons dos pássaros e observando as copas das árvores mais próximas.

Então vi algo surreal. Uma das árvores se destacava das outras, por, evidentemente, ser a maior. Tanto na altura quanto na largura. Em uma certa altura de seu tronco, havia um buraco, e dele, descia uma escada de corda. Entre a escada e o interior da árvore, havia uma pequena extensão vertical de madeira, como um chão, formando uma varanda rudimentar. E nessa varanda, estava uma figura no mínimo inusitada: Um homem aparentemente muito velho, de cabelos e barbas longos e brancos, pele morena e enrugada, sentado em uma cadeira de balanço e fumando um cachimbo.

Era difícil distinguir expressões faciais daquele rosto inédito por trás daquela espessa, mas eu pude sentir que, quando ele observou que eu havia notado sua presença, deu um sorrisinho. Não um sorriso maldoso, ou um sorriso de quem acabou de ouvir uma piada genial. Mas um sorriso travesso, como o que se vê no rosto de uma criança de 5 anos que tocou a campainha do vizinho e saiu correndo até o final da rua. Parecia estar se divertindo com o fato de que um estranho havia descoberto seu refúgio tropical e que levara um leve susto com sua presença inesperada.

- Suba, meu jovem. - Disse ele, com uma voz rouca porém jovial. - Não tenho companhia há anos. Preciso de alguém com quem eu possa colocar o papo em dia.

Eu geralmente não confiaria em velhos misteriosos que moram no meio da florestas e são estranhamente corteses, mas algo na carisma daquela figura me conquistou, e me senti inclinado a obedecer o comando solicitado logo de primeira. Enquanto eu subia pela escada de corda, ele levantou-se e entrou pelo buraco do tronco, sumindo dentro da árvore. Quando terminei a escalada, eu o segui, e me deparei com seu lar.

Dentro da árvore, havia um ambiente precário que, eu logo concluí, funcionava para aquele eremita como uma casa. Um banco de madeira forrado com algumas folhas, em um formato que lembrava uma cama, podia ser visto logo ao lado de um galho atravessado, onde estavam penduradas algumas peças de roupa esfarrapadas. Na outra parede, vindo do exterior, um pedaço de bambu cortado ao meio, com a concavidade virada para cima, trazia água da chuva para um grande recipiente, e, ao lado dele, haviam alguns menores. Também havia um outro buraco ligeiramente inclinado na vertical, o que me dava suspeitas de que, além daquilo, também havia um andar superior.

- Obrigado - Disse à figura hospitaleira, assim que entrei - senhor...

- Roosvelt. - Respondeu ele, me saudando com um vigoroso aperto de mãos.

- Baker. - Apresentei-me, em retribuição.

- Venha, suba. - Convidou ele, indo em direção ao tal buraco inclinado. - Lá em cima é mais apropriado para visitas.

Segui Roosvelt, e então minha teoria do segundo andar provou-se verdade. Não havia muito lá, apenas um rudimentar armário, onde estavam penduricados vários frascos, folhas, ervas e miçangas, e uma mesa, precária, feita de madeira, com duas cadeiras. Sentei-me, e logo o eremita juntou-se a mim, trazendo duas pequenas cuias em mãos, estas preenchidas por um líquido esverdeado.

- Chá. - Explicou ele.

- Grato. - Agradeci, tomando uma das cuias e bebendo de bom grado. Era, de fato, chá, e estava muito bom.

- O que um jovem como você faz num pedaço de terra condenado como esse, meu filho? - Perguntou meu interlocutor.

- Estou só de passagem. - Expliquei. - Sou um explorador.

- Interessante. - Murmurou o eremita.

- Vivo em Lancashire. Mas quase não paro em casa.

- Não gosta de uma vida calma, então?

- Não muito. - Admiti. - Mas tenho meus momentos.

- Ah, eu simplesmente desisti, essa sociedade maluca. A melhor coisa que fiz foi embarcar naquele navio. Lady Vain II, hah! - Zombou Roosvelt. - Frágil como um pedaço de papel. Naufragou há alguns anos atrás, e eu consegui escapar em um bote com mais uns dois. Acabamos remando até essa ilha, e eu moro aqui desde então. Os outros dois, idiotas, morreram rápido. Um teve uma infecção fatal, e o outro, comeu uma planta que não devia.

- Ninguém nunca veio investigar sobre esse naufrágio? - Indaguei.

- Ah, já devem ter vindo. Mas essa ilha é desconhecida pelo mapa. As pessoas devem achar que é inabitada. Ou, pelo menos, por humanos. Além disso, o Lady Vain encalhou longe daqui. Foram uns  bons dias de mar até chegarmos na praia. Isso já tem umas boas décadas.

- E você não tem vontade de voltar?

- Sinceramente, não sei se eu conseguiria. Já estou tão acostumado com minha vida pacata aqui, afastado de tudo. Além disso, estou velho. Vivi uma vida boa, e uma velhice excepcional. Mas agora, vamos deixar isso de lado. Me conte algumas novidades do mundo atual.

Então, passamos algum tempo discutindo amenidades. Falamos sobre a lua e os ministros, sobre o clima e os avanços tenológicos da humanidade. O assunto englobou até mesmo viagem no tempo. Por fim, vi que o sol já ia se por, e decidi encerrar minha conversa sem preliminares. Expliquei rapidamente ao divertido eremita de que eu havia há muito marcado com meus amigos de me encontrar com eles na praia e me despedi, agradecendo pelo chá e pela conversa. Ele me agradeceu igualmente, indicando o caminho mais rápido para a praia.

Após alguns minutos, eu já havia chegado ao meu destino. Dei uma última olhada para a orla, com um sorriso, e, quando questionado por meus amigos, expliquei para eles o ocorrido, no formato de anedota. Eles não me acreditaram, e inclusive mencionaram que o naufrágio da Lady Vain não havia deixado sobreviventes. Fiz pouco caso, pois estava tão feliz que não queria me estressar. Partimos naquele final de tarde, impulsionados pelo vento gelado.

Encontrar Roosvelt foi uma honra e um privilégio. De vez em quando pego-me pensando em como ele deve estar agora. Se está bem, ou mesmo vivo. Não visito aquela ilha desde então, mas alguma coisa me diz que não preciso me preocupar com ele. Ele se vira.

sábado, 4 de outubro de 2014

Criaturas estranhas

Escondo-me debaixo da cama, assustado com a situação. Meus pés estão frios como os de um defunto no Polo Sul, descalços, cansados após tanto correrem. O medo faz com que minha respiração fique mais densa, mas ainda assim, tento fazer com que esta seja silenciosa, pois não quero que ele me ache.

Estive fugindo dele por mais ou menos meia-hora. Fui pego de surpresa por sua entrada em minha casa, e, ao ouvir seus gritos, evidentemente percebi que não era uma criatura amigável e muito menos inofensiva.

Antes de entrar debaixo da cama, consegui ter um vislumbre rápido de sua aparência física. Ele era fisicamente muito superior a mim, podendo vencer-me facilmente em uma disputa corpo-a-corpo, ou até me matar, se quisesse. Sua força era demonstrada pela distância que os móveis percorriam após serem golpeados pela criatura.

Vivo sozinho, em uma casa afastada da cidade. Criaturas como esta volta e meia aparecem por aqui, coisas surreais que parecem ter saído de histórias de horror lovecraftianas. Coisas que ninguém acreditaria. Periodicamente sou visitado por esses seres violentos, mas nunca sou corajoso o suficiente para enfrentá-los, o que faz com que eu, que já tenho personalidade reclusa, seja literalmente recluso, me escondendo enquanto espero os visitantes indesejados irem embora.

Eles me visitam desde criança, na época em que morava com meus pais, em uma casa completamente diferente, em outro estado. Naquela época, muitas vezes, conseguiam me pegar. Agrediam meus pais, e, principalmente, me agrediam, fazendo menção em me matar, o que me deixava em prantos. O que me salvava, muitas vezes, era, após que meu fôlego acabasse de tanto chorar, encolher-me, prender a respiração e fingir que eu havia morrido. É impressionante quanto o medo infantil foi-me útil naqueles tempos. Infelizmente, agora, não tenho os mesmos culhões que eu tinha quando pequeno, e esconder-me ao primeiro sinal das criaturas me parece uma opção muito mais agradável.

Depois de adulto, me mudei, na esperança de que os invasores monstruosos fossem exclusividade daquela cidade. Fui para outro estado, o mais longe possível, e nos primeiros dias, tudo corria bem. Porém, depois de algum tempo, eles voltaram a aparecer.

Ouço o invasor bufar, cansado, e bater em algo que, pelo barulho que fez ao se espatifar na parede, soava muito como meu criado mudo. Seus passos pesados se afastam, pouco a pouco, até que finalmente tomo coragem para levantar-me lentamente, como um roedor alerta, e aproximar-me da janela de meu quarto. Olho para baixo e vejo a criatura ir embora, insatisfeita. Seu nariz adunco, olhos atentos como os de uma ave de rapina, e estrutura alta, porém ligeiramente curvada.

Algumas das criaturas são bem antropomórficas, como a que acaba de sair de minha casa, mas outras são tão monstruosas que chega a ser cartunescas. Lembro de uma que apresentava características lupinas, que atacara-me quando eu era bem novo.

Respiro, vitorioso, uma lufada de ar fresco. Sinto-me aliviado por ter conseguido escapar vivo, mas vivo em agonia, pois sei que, mais cedo ou mais tarde, as criaturas voltarão. Elas parecem ir gradativamente ficando mais zangadas, apesar de aparentemente menos vorazes. Fico pensando se mais alguém é ciente da existência desses invasores peculiares, e se pretende fazer alguma coisa em relação aos mesmos. Sei que terei aturar-los por mais uma vasta gama de anos. Mesmo que eu me mude novamente, sinto como se eles fossem me perseguir, para onde quer que eu vá. Mas tenho esperanças. Tenho esperanças, pois, sem elas, eu não poderei viver.

Recomponho-me, tirando a poeira das roupas, enquanto olho para a bagunça ao meu redor. Pondero se a mesma criatura retornará ou não ainda hoje. Eu realmente não sei. Mas sei que será um longo dia.

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Eu não sonho com ovelhas

Com agradecimentos ao colega Phillip, pelo maravilhoso conceito do qual eu não bebi da fonte, mas sim mergulhei na mesma.

Peter chegara em casa após um longo dia na cidade. O céu cinzento era hostil, e as ruas também não eram amigáveis. Era uma péssima época para se viver em Los Angeles, com a lenta degradação da Terra.

Ele morava sozinho em um prédio abandonado, e lotado de tranqueiras nos quartos vazios. O prédio era pequeno e ficava em uma zona tão hostil da cidade, que nem os fugitivos se atreviam a encortiçar-se lá. Peter gostava um pouco disso. Ele encontrava um ar de serenidade da solidão. De vez em quando, falava sozinho.

Chegou no apartamento em que morava, a porta destrancada e encostada, como sempre. Tirou o casaco e jogou-o sobre uma cadeira, e chutou suas botas para debaixo da mesma. Andou em direção ao sofá, que estava logo adiante, e esparramou-se nele.

Olhou para o quadro pendurado na parede, ao lado da porta. Era a foto de uma ovelha. Ovelhas de verdade não eram vistas por ele há muito tempo. Ele não entendia o motivo das pessoas terem um deslumbre tão grande por animais de estimação, tendo-os como sonhos de consumo. Ele achava animais toscos e sem graça.

Aquele havia sido o pior dia da vida de Peter. Ele havia feito o infame Teste, para descobrir a verdade sobre si mesmo. Um daqueles malditos caçadores, que se acham tão espertos, executou o teste nele há horas atrás.

Peter não era humano, mas sim um androide. Era pra isso que servia o teste. Com ele, o caçador identificava os androides entre os humanos, e, logo após isso, os executava. E ninguém se importava. As pessoas achavam que androides eram criaturas vazias, sem sentimentos, o que não era verdade. Eles eram criados, sim, com uma mente vazia, mas ao longo de seu período de vida, eventualmente iam desenvolvendo emoções. Mas eles não consideravam isso na hora de puxar o gatilho.

Entretanto, ele havia conseguido fugir. Ele atirou primeiro. Matara o caçador antes que esse o matasse. Depois disso, fugiu. Voltou para casa, e sabia que eles iriam procurá-lo lá. Mas ele não ligava. Na verdade, não queria mais viver. Porém não queria ser morto por um rato armado sujo que lucraria monetariamente com sua morte.

Um novo caçador já estava entrando no prédio para por um fim em Peter. Ele sabia que o caçador estava lá. Podia ouvir seus passos ocos ecoando no piso do prédio.

O caçador, de repente, percebeu como o silêncio do lugar o deixava desconfortável. Foi o último pensamento que lhe passou pela mente antes dele ter sua cabeça separada do corpo por um pedaço de entulho que voou em sua garganta durante a misteriosa e inusitada explosão.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Sobre computadores e a biblioteca de Alexandria

Durante boa parte de minha juventude, interessei-me por contos. Fossem pequenas estórias escritas durante o período vitoriano, fossem trechos atuais publicados em jornais locais, sendo curto o suficiente para eu ler durante viagens de ônibus, já me despertava o interesse. O curioso de contos, porém, é que eles são, estranhamente, como bombons. Apenas um nunca é o suficiente. E isso me levava a recorrer à livros de compilações. Eu certamente mantinha uma preferência por comprar tais livros, e tê-los sempre em minha prateleira para eventuais saudades de textos específicos, porém eu infelizmente não dispunha sempre do orçamento necessário para sustentar esse meu pequeno vício literário, então muitas vezes recorria à biblioteca local.

Estava retornando lá para devolver um livro que continha diversos contos narrando as proezas de Sherlock Holmes, entre eles, dois de meus favoritos - O Intérprete Grego e A Face Amarela. Sendo frequentador assíduo da biblioteca, eu já conhecia bem a pequena variedade de funcionários do lugar - uma mulher de nariz fino e percepção afiada que trajava sempre um impecável paletó azul marinho, uma senhora gentil com olhos lindos e uma personalidade afável, e um rapaz muito magro e pálido, que parecia estar sempre com a cabeça nas nuvens. Porém, para minha surpresa, ao dirigir-me ao balcão, encontrei uma pessoa diferente.

Era uma moça muito jovem, de cabelos loiros presos num coque apertado e olhos muito atentos no computador do balcão. Presumi que havia sido contratada alguns dias antes, pois eu não a havia visto em minha visita anterior. Devo admitir que sou péssimo em interagir com pessoas desconhecidas, mas eu precisaria devolver o livro mais cedo ou mais tarde, e ela não parecia muito apressada em ceder seu posto para algum outro bibliotecário; Então, aproximei-me.

- Boa tarde. - Saudei, em um tom de voz neutro.

- Boa tarde. - Ela respondeu, ainda sem tirar os olhos do monitor, os dedos teclando rapidamente e tornando o barulho das teclas o único ruído audível no ambiente além de nosso tímido diálogo.

Fiquei alguns segundos em silêncio, pensando no que dizer em seguida, quando, de repente, ela parou de digitar e olhou em minha direção.

- Oh. Veio alugar este livro? - Perguntou.

- Devolver. - Corrigi.

- Certo. - Murmurou.

Estendi a mão com o livro e ela o tomou. Pegou então um aparelho que estava ao lado do computador e, com ele, escaneou um código de barras que estava na contracapa.

- Um momento... - Disse, voltando a teclar freneticamente, quando, de repente, parou e franziu o cenho.

Deu alguns cliques impacientes no mouse do computador, até que desistiu, suspirou com um ar zangado e reclinou-se em sua cadeira, levando a mão ao rosto.

- Desculpe por isso. Mas essa máquina execrável - Reclamou, dando uma pancada no estabilizador, que produziu um ruído surdo - não está funcionando direito.

- Não me admira. - Comentei, após um murmúrio bem humorado. - Isso aí é um dinossauro. Frequento essa biblioteca há uns dez anos, e, da primeira vez que vim aqui, esse computador já era obsoleto.

- Preciso me acostumar com essa coisa. - Falou ela. - Eles costumavam ter sistemas operacionais mais rápidos no meu antigo emprego.

- Ah, você vai pegar o jeito. - Encorajei-a. - Tem um rapaz que trabalha aqui que também teve essa mesma dificuldade quando entrou, mas pelo jeito agora já está habituado.

- Sinceramente, não sei como ele consegue.

- Segundo ele, funciona bem no geral. Mas as redes sociais estão bloqueadas.

- Ótimo. - Resmungou, ironicamente, e depois olhou de relance para o monitor e exibiu um ar de surpresa.

- Voltou? - Indaguei, curioso.

- Voltou. - Confirmou ela.

- Vamos tentar de novo? - Perguntei.

Agora já mais bem humorada, ela escaneou novamente o código de barras e voltou para a sua rápida e complexa sequência de datilografia. Após alguns segundos, ocupados por ela com um tamborilar de dedos na mesa, a pequena impressora que se localizava no balcão lançou para fora uma pequena nota fiscal amarelada, que foi recebida por nós dois com sorrisos. O meu era neutro, quase que automático, mas o dela exibia uma alegria genuína de vitória.

A bibliotecária rapidamente alcançou uma caneta esferográfica, e, após girá-la astutamente entre os dedos de sua mão esquerda, assinou dois pedaços da nota com uma rubrica, e entregou-a para mim, para que eu fizesse o mesmo. Após eu fazê-lo, ela cortou a nota em duas com um movimento singular de tesoura, guardou um pedaço em um pequeno arquivo que ficava do outro lado do balcão  entregou o outro a mim.

- Obrigado. - Agradeci.

- Não há de que. - Respondeu ela.

Chequei meu relógio de pulso. Eu ainda dispunha de uma vasta gama de tempo em minhas mãos. Então, girei nos calcanhares e virei-me para as fileiras de prateleiras. Encarei-as por alguns segundos, batucando os pés no chão e pensando no que eu faria em seguida. Então, virei-me novamente para o balcão e perguntei para a moça:

- Vocês adicionaram algo novo na sessão de contos ultimamente?

- Para ser sincera, não tenho certeza - Disse ela, erguendo uma sobrancelha. - Trabalho aqui há apenas alguns dias, mas, até onde sei, não.

Suspirei, desapontado.

- Eles não atualizam essa sessão há meses. Já estou relendo meus favoritos desde que me lembro bem e isso realmente está começando a ficar cansativo.

- A variedade realmente não é das maiores - Concordou ela. - Isso aqui não é exatamente a biblioteca de Alexandria.

- É, creio que não. - Murmurei, olhando de relance para as prateleiras. - Os papéis não ficam disponibilizados em rolos encaixotados e eu espero que esse lugar não tenha um final semelhante.

Meu comentário foi recebido com uma gargalhada audível.

- Oh, desculpe. - Murmurou ela. - As vezes eu esqueço que não se deve fazer barulho numa biblioteca.

- Não se preocupe com isso. Esse lugar anda tão deserto, que, tirando os bibliotecários, só me lembro de ter visto três pessoas aqui no último mês. E uma delas sou eu.

- As coisas vão indo mal. As pessoas não alugam mais livros.

- Verdade. Mas não sei se é porquê estão deixando de ler, ou se estão baixando-os por leitores virtuais ou computador.

- Acho que um pouco dos dois. Mas leitores virtuais apresentam tanta ameaça aos livros de papel quanto elevadores apresentam às escadas.

- Justo. - Concordei. - Gosto desse lugar. Tem um ar de serenidade. E segurança. Acho que me afeiçoei muito à esse prédio. Passei a maior parte de minha adolescência aqui, sabe. Deus, esse lugar costumava a abranger uma tremenda barulheira. A bibliotecária mais antiga daqui arrancava os cabelos, indo de mesa em mesa e pedindo para as pessoas fazerem silêncio.

- Quem olha isso agora, nem acredita. - Disse ela.

- É... - Murmurei, pensativo. - Espero que esse lugar não feche tão cedo.

- Provavelmente não irá. É mantido pelo governo, ou algo assim. Eles só fecharão caso precisem de mais dinheiro para "reformar as ruas" ou  "ajudar a população".

- Ou comprar um carro novo e reformar um banheiro.

Meu comentário foi respondido por um risinho irônico.

- Bem, obrigado pela ajuda. - Falei, dirigindo-me à porta de saída.

- Volte sempre. - Respondeu ela, olhos novamente focados no computador.

- Eu sempre volto. - Disse, olhando para o teto e tamborilando os dedos na porta por um segundo, antes de sair.

Gosto muito daquela biblioteca. Claro que sua atmosfera não é metade do que foi antigamente, vívida em seus anos dourados, mas há algo reconfortante em saber que existe um lugar sólido e confiável, esperando por você, no mesmo lugar da cidade, todos os dias.