domingo, 31 de agosto de 2014

O Relógio Quebrado

Limpava meus óculos na manga do paletó enquanto, mentalmente, eu amaldiçoava os dias frios e as lentes embaçadas que com eles vinham. Olhei para o relógio da parede para ver que horas eram, quando lembrei que ele, há muito, havia parado de funcionar, quando os ponteiros indicavam que o horário era 12:05. Suspirei e enterrei o rosto nas mãos. Rapidamente, alcancei meu bloco de notas e minha caneta, onde anotei, sem floreios, o lembrete: "Relógio novo", logo abaixo de "Leite" e "Arroz" na lista de compras.

Larguei a caneta na mesa e mordi o lábio inferior, olhando novamente para o relógio quebrado. Passei a mão nos cabelos - uma mania minha que aparece sempre que estou nervoso - e levantei da cadeira em que eu estava sentado. Peguei meus óculos da mesa e levantei-os em direção à luz, onde, após olhar minuciosamente para as lentes com o intuito de conferir se estas ainda estavam embaçadas ou marcadas com digitais e sujeira, finalmente coloquei-os em meu rosto.

Peguei a caneta e meu caderno - Não meu caderno de anotações cotidianas, onde escrevo coisas como listas de compras e pequenas crônicas, mas sim o caderno que uso para trabalhar. Abri na página onde eu havia escrito pela última vez e dei uma rápida olhada, daquelas que só os métodos de leitura dinâmica podem oferecer, em meus últimos escritos, antes de fechá-lo e metê-lo debaixo do braço.

Saí pensando se Lewis faria algum progresso naquele dia.

Após algum tempo pensando com meus botões no transporte público e mais um quarto de hora de uma caminhada agradável, finalmente cheguei ao Asilo Mental Lovecraft, onde eu trabalhava analisando a mente de pacientes insanos e tentando consertar-los. Uma função nobre, eu gostava de pensar. Sentia-me como um relojoeiro, ajeitando as engrenagens e fazendo os ponteiros voltarem a funcionar do jeito certo.

O lugar não era muito amigável, e, creio eu, aquilo não fazia bem aos pacientes. Era todo pintado em cores escuras e sóbrias, e a iluminação também não ajudava muito. A maioria dos pacientes conviva em grupo, porém os mais instáveis - ou perigosos - eram mantidos em celas separadas. Este era o caso de Lewis, o paciente específico o qual eu havia sido contratado, meses atrás, para analisar.

- Atrasado. - Bufou o recepcionista, um homem pálido, sisudo e de olhar vazio. Conhecendo-o por certo tempo, eu já sabia que aquela era a ideia dele de um gesto caloroso de boas vindas.

- Boa tarde para você também, Asimov. - Respondi, com um pequeno sorriso, enquanto entrava no bloco das celas, seguido por um segurança alto, de ombros largos, o molho de chaves tilintando em sua cintura. As celas eram seladas com portas reforçadas, aonde, acima do número do paciente estampado, havia uma pequena escotilha, por onde podíamos ver o interior do ambiente.

Andei pelo corredor, o som de meus passos quase inaudível em contraste com a gritaria que vinha de dentro e de fora das celas, até chegar na porta de número vinte e quatro do setor um. O segurança abriu a porta, e fechou-a rapidamente após eu entrar, mas não a trancou. Já estava acostumado a ser observado por ele durante minhas sessões, mas ainda assim, me sentia sozinho com Lewis naquela cela, o que, confesso, me deixava ligeiramente amedrontado.

- Boa tarde, doutor. - Saudou ele, sorrindo. - É tarde? Eu nem sei mais quando é manhã, tarde ou noite quando estou aqui dentro. A única janela dá pra esse corredor mal-iluminado...

- Isso de fato deve ser muito inconveniente. - Falei, sentando-me na cadeira que havia sido previamente posicionada pelo guarda, visando minha visita.

- Você não imagina. - Disse ele, lambendo os cantos da boca. - Eu costumava a dividir as partes do dia pelas refeições que eles me davam, mas eles pararam de me trazer comida há alguns dias atrás por mal comportamento.

Suspirei, com um ar de desaprovação.

- O que você fez dessa vez?

O semblante dele, que parecia sadicamente feliz antes de minha pergunta, agora murchara tristemente. Isso me deixara mais aliviado. Quando feliz, Lewis tinha um rosto assustador. Com sua cabeça grande de queixo fino e cabelos castanhos com avantajadas entradas, seus olhinhos pequenos e profundos, emoldurados por sobrancelhas cheias e arqueadas, ele tinha um ar intimidador. Porém, quando triste ou assustado, parecia extremamente vulnerável. Era ali que eu entrava - aproveitava seus momentos de sensibilidade para extrair informações. Como um apicultor psicológico.

- Eu discuti com Hank. - Respondeu ele.

- Hank? - Repeti, posicionando a caneta e o caderno. - Quem é Hank?

- O grandalhão que fica aí fora, nos observando. - Falou, levantando o olhar para o mesmo.

- O que houve? - Perguntei, temendo sua resposta.

- Eu discuti com ele.

- Sobre...?

- Ele estava andando por aqui com o diretor, e me chamou de maluco. Eu retruquei, dizendo que não era maluco. Então ele caçoou de mim, e eu o xinguei.

- Na frente do diretor?

- Na frente do diretor. - Ele assentiu, olhando pra cima, as rugas da testa enrijecendo. - Ele disse que vou ficar três dias sem comer nem beber nada.

- Três dias? - Repeti, tomando nota.

- Não sei quantos já passaram, mas parece que foi um tempão. Minha boca está seca, doutor. Está rachando. - Reclamou, mordendo os lábios e arrancando a pele deles com os dentes.

- Eles não podem fazer isso contigo. - Falei. - Sua família sabe o que isso está acontecendo? Você pediu para que eles fossem contactados?

- Minha família não liga para mim. - Gritou ele, com olhos lacrimosos. - Eu nem sei onde minha ex-esposa está agora. E minha filha me odeia.

- Não seja assim - Disse eu, tentando reconfortá-lo - Você vai ficar melhor, Lewis. Está fazendo um progresso muito bom desde que começamos essas sessões semanais. Você vai ficar bem.

- Não vou. - Ralhou ele, virando-se em sua cama e olhando para a parede, suas costas apontando para mim. - Eu serei eternamente perturbado por ter sido um prisioneiro dessa porcaria.

- Você não é um prisoneiro. - Corrigi. - É um paciente.

Ele virou-se rapidamente para mim, os olhos esbugalhados saltando das órbitas.

- PACIENTE?! - Repetiu ele, virando sua cabeça para os lados como uma coruja. - Eu estou confinado nessa cela. Não consigo nem ter movimentos livres por causa desse negócio prendendo meus braços. Sou obrigado a tomar diariamente remédios que eu nem sei para que servem. Isso não é um hospital, doutor. É um presídio. A diferença é que, ao invés de criminosos, ele está cheio de loucos.

Eu observava e ouvia, em silêncio.

- Vocês tentam me curar. Mas não há como me curar. Eu posso ser louco, mas não sou idiota. Eu sei como as coisas funcionam. E sei que nunca serei plenamente reconhecido por vocês, "sãos", nesse mundinho maldito. Mas sabe de uma coisa?! Estou bem aqui. Estou MUITO bem. Eu não faço questão de ser aceito nesse planetinha moribundo. Vocês me exilam, achando que eu sou perigoso, quando não veem que não sou eu que mato, abuso, manipulo e desrespeito meus semelhantes, dia após dia. Se isso é ser louco, eu estou muito bem assim.

Hank, o segurança, bateu no vidro da escotilha, apontando para o pulso com o sinal de que a sessão havia acabado. Mais cedo do que de costume, imaginei. Acho que ele deve ter ficado preocupado com a reação de meu paciente.

Levantei-me e respirei fundo, antes de me despedir.

- Adeus, Lewis.

Ele me observou, sombrio.

- Eu não fiz nenhum progresso hoje, nesse seu quesito, fiz?

Olhei em seus olhos por alguns segundos antes de responder.

- Muito pelo contrário.

Virei-me e encontrei Hank abrindo a porta. Ele me acompanhou no caminho para a saída do bloco de celas.

- As coisas estão cada vez mais difícil com Lewis. - Comentou Hank.

- Certamente. - Respondi. - Mas não seja assim tão duro com ele. Volte a trazer-lhe comida. Ele precisa.

Ele resmungou.

- Sabe. - Disse ele - Mesmo um relógio quebrado marca a hora certa duas vezes ao dia. Apesar de ser um maluco, o Lewis fala umas coisas que te deixam pensando de vez em quando.

- Verdade. - Falei, antes de sair e caminhar para pegar o transporte público.

Pensei muito nas palavras de Lewis e de Hank durante minha breve caminhada. "Mesmo um relógio quebrado marca a hora certa duas vezes ao dia". As vezes, acho que Lewis está certo. Foi naquele dia que decidi que eu não poderia mais fazer aquilo. Dei meia-volta, retornei  ao Asilo Mental e pedi demissão.

Cheguei em casa aliviado, como se eu fosse o titã Atlas após tirar o peso do mundo dos ombros. Fitei o relógio que marcava 12:05, na parede da cozinha. Larguei o caderno de trabalho sobre a mesa e puxei o caderno de anotações. Risquei "Relógio novo" da lista.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

A capa amarela

Desde muito moço, estou habituado a acordar cedo. Não costumo dormir muito - geralmente deito onze e meia da noite e acordo cinco da manhã. Mas isso já é, para mim, o suficiente.

Visto-me no escuro, tendo como iluminação natural apenas a fraca luz da aurora do dia, enquanto ajeito o nó de minha gravata no espelho. Saio de casa e caminho pela calçada, olhando o rosto da cidade logo de manhã, quando é mais belo. O barulho oco de meus passos ecoa pelo chão, fazendo com que pombos voem para longe enquanto folhas deslizam, empurradas pelo vento.

Há um pequeno teatro, por onde costumo passar quase que diariamente, por encontrar-se no meio de minha trajetória diária. Parece estar sempre vazio e fechado, mas em frente a ele, encontrava-se sempre um sujeito.

Tratava-se de um homem alto, olhos verdes intensos e cabelos muito pretos penteados para trás. Vestia roupas muito gastas, como as de um príncipe de peças teatrais - presumia eu que era um dos figurinos velhos de algum espetáculo. Tudo estava muito encardido, de seus sapatos as abotoaduras das mangas do paletó, mas, em contraste com aquele figurino envelhecido, ele trajava uma capa amarela, que era tão brilhosa e elegante que dava beleza e um ar nobre àquela figura, ofuscando a fantasia velha e o rosto cansado. Parecia, de fato, um príncipe dinamarquês.

Estava sempre lendo alguns papéis em voz alta, fazendo com que a maioria das pessoas que por ele passassem o olhassem de forma pouco amistosa, julgando-o mentalmente. Mas eu, que tinha um olhar estanque, gostava de reparar no que ele estava lendo.

Era um texto muito bonito. De início, não sabia se era uma passagem da bíblia, um monólogo teatral ou simplesmente trechos de um poema. Mas soava muito bem, e a melhor parte de minha trajetória diária era, sem dúvida, ouvir as palavras daquele homem.

- Ultimamente, não sei por quê - O homem proclamava em alto e bom tom, enquanto eu caminhava em direção ao teatro -  perdi toda a alegria, desprezei todo o hábito dos exercícios, e, realmente, tudo pesa tanto na minha disposição que este grande cenário, a terra, me parece agora um promontório estéril; este magnífico dossel, o ar, vede, este belo e flutuante firmamento, este teto majestoso, ornado de ouro e flama, não me parece mais que uma repulsiva e pestilenta congregação de vapores.

A oratória dele era muito boa, e seu tom de voz voraz chamava a atenção de quem passava (infelizmente, nem sempre, de maneira positiva). Após algumas semanas, eu já sabia de cor o texto que ele lia.

- Que obra de arte é o homem! Como é nobre na razão! - Gritava ele, na segunda parte do monólogo, que era recitada com mais vontade e energia do que a primeira. - Como é infinito em faculdades! Na forma e no movimento, como é expressivo e admirável! Na ação, é como um anjo! Em inteligência, é como um deus! A beleza do mundo! O paradigma dos animais! E, no entanto, para mim, o que é esta quintessência do pó?

- O homem não me satisfaz - Murmurava eu, quando passava, em uníssono com o final do discurso daquela figura. - Não, nem a mulher também.

Um dia, intrigado, decidi tomar coragem de perguntar para o homem do que se tratava aquele texto.

Caminhei à passos largos, decidido, até o teatro, e, quando cheguei, fui surpreendido. Pela primeira vez em semanas, ele não estava lá. Mas havia algo diferente naquele teatro. Alguns sons pareciam sair de dentro dele, e, na fachada do pequeno prédio, um letreiro anunciava: "HAMLET".

Após erguer a cabeça e ler aquilo, sorri. Eu havia lido Hamlet quando era garoto, naturalmente, com propósitos letivos. Lembrava que o protagonista era uma figura brava, destemida e determinada.

"Não existe", pensei eu, "ninguém melhor para interpretar Hamlet do que o homem da capa amarela".

Seis pistolas e uma adaga

Museus são ambientes tão informativos e interessantes que não entendo como alguém pode não gostar destes.
Lá estava eu, ponderando em um largo saguão, vazio, a não ser por mim e pelos objetos em exposição. Estava observando especificamente um conjunto de pistolas do século XVII. Haviam envelhecido muito mal - estavam cheias de manchas e pareciam muito malcuidadas, como se seu dono, na época, não se importasse muito com elas, e os restauradores do museu, muito menos. Estavam deitadas sobre uma mesa branca, enfileiradas e cobertas por uma vidraça linda e clara como um lago cristalino e cheio de sonhos. Ao lado delas, havia uma adaga de combate, guardada em uma bainha de couro muito gasta.

- Fico pensando quantos pescoços essa adaga já perfurou - Disse uma voz ao meu lado, pegando-me de surpresa.

Girei nos calcanhares e virei-me para ver quem seria essa figura, que parecia ter saído das sombras, e agora comentava casualmente comigo à respeito de armas brancas. Era um homem muito idoso, um pouco acima do peso. Tinha um cabelo branco e fofo como algodão, olhos azuis elétricos, saltados e profundos. Seu rosto enrugado era bondoso, e um pequeno sorriso estava emoldurado em sua pele macilenta. O homem, curioso, estava à minha direita, apoiado em sua bengala para ver a vitrine mais de perto.

- Desculpe. - Balbuciei. - Não vi o senhor chegando.

- Ora, não se preocupe com isso. - Respondeu o homem, com uma voz grave, porém amigável - E não precisa me chamar de "senhor".

- Certo. Como se chama? - Perguntei

- Não me chamo. - Respondeu ele, com um risinho travesso - Meu nome não importa muito. Sou o Curador desse museu. Bom, um deles. A maioria dos outros não liga muito pra esse lugar, e está ocupada demais lendo revistas, tomando café com bolachas ou dormindo em expediente. Mas eu sou o Curador principal. O original, caso você assim prefira. Esse museu é um lugar incrível. Estou sempre dando uma volta pelas minhas salas favoritas. Temos de tudo aqui, sabe. Armas, armaduras, estátuas, pinturas... tem umas que são tão detalhadas que parecem até que são momentos reais capturados numa tela.

- Tem realmente algumas coisas muito interessantes aqui - Concordei. - Senhor... curador.

- Assim está melhor. - Respondeu ele, com aquele sorriso tão travesso que parecia ter sido tirado de um duende trapaceiro de contos de fadas, mas ainda assim, transmitia simpatia.

- Estou só de passagem por essas cidade. - Falei. - Sou um viajante. Há alguns meses atrás, decidi sair da rotina para ver algumas coisas novas. Amanhã estou zarpando para a Irlanda.

- Lugar bonito - Comentou o Curador - Apenas uma dica. Trevos de quatro folhas e coquetéis molotov, combinação perigosa.

Não entendi o que ele quis dizer com isso, mas acenei com a cabeça demonstrando compreensão. Essa é uma das minhas piores manias. Quando estou divagando em meus devaneios e acabo não entendendo algum comentário de meus interlocutores, eu simplesmente aceno a cabeça.

- Já parou para pensar que você é História viva? - Perguntou o Curador.

- História viva? - Repeti.

- Sim. - Respondeu o mesmo. - História viva. Tudo o que está aqui, veja você, fez parte do passado. Roupas que alguém utilizou na renascença italiana, armas de combate da idade média, artefatos tribais de séculos atrás... em suas respectivas épocas, ninguém nunca pensou que aquilo poderia vir a ser história. Você acha que Van Gogh um dia sequer pensou que viria a ser um dos pintores mais famosos de todos os tempos?

- Não. - Disse, simplesmente.

- Não. - Afirmou o Curador. - Van Gogh nunca sequer vendeu um quadro na vida. Ele jamais pensou que entraria para a História. Você já pensou que pode entrar para a História? Ela é feita de gente comum, como eu e você. Nem todas as figuras mundialmente conhecidas são extraordinárias ou autores de façanhas notáveis. São apenas pessoas que viveram uma vida comum, sem saber que, indiretamente, contribuíram com o andamento da humanidade.

Parei para pensar nas palavras daquele senhor de voz grave e cabelos de algodão.

- Essa é uma filosofia de vida bem comovente. - Falei, após alguns segundos.

- De fato é. - Concordou o Curador, com um tom de voz satisfeito, como se estivesse feliz com o fato de que alguém concordara com sua opinião. - Agora, com licença. Você estará muito ocupado logo logo, creio eu.

Ergui uma sobrancelha.

- O que quer dizer com isso? - Perguntei, curioso.

Ele exibiu seus dentes amarelados em um último sorriso.

- Eu não gosto de alterar o curso da história. Continue sendo quem você é. Isso pode ter uma importância vital para o futuro.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

O homem do bigode espesso e do chapéu escarlate

O parque é um bom lugar para se dar uma volta. Respirar fundo. Não sou uma pessoa de hábitos sociáveis - Meus poucos amigos me consideram muito recluso e brincam com o fato de minha vida social ser pouco movimentada. Mas de vez em quando, aprecio prazeres simples da vida, como uma caminhada pelo centro da cidade ou um fim de tarde observando o litoral. Nunca gostei de frequentar praias socialmente, mas sou apaixonado pelo modo com que as ondas delineiam e quebram-se nas rochas e na areia, todo esse cenário recortado pela serenidade transmitida por um céu cinzento, característico de dias nublados.

Mas nesse dia, em especial, estava no parque da cidade. Não via o parque desde que eu era bem moço, mas lembrava claramente de suas características: As cercas metálicas pintadas de verde-escuro, as árvores de todos os tipos, o cheiro de terra molhada, as fontes jorrando água cristalina, o cheiro de pipoca e o barulho das crianças brincando. Aquele parque não havia mudado nada em anos. Acho que algumas áreas mais tradicionais de cidades não tão grandes tem essa magia. Conseguem reter memórias. Como se a infância fosse uma caneta tinteiro, e os parques fossem folhas de papel creme que retém nossos anos de alvorada e os mantém em forma de um poema, que está lá para ser apreciado de tempos em tempos.

Caminho preguiçosamente naquela tarde quente de verão enquanto vejo os raios de sol transpassarem entre as folhas, mãos nos bolsos, a cabeça erguida, um sorriso jovial emoldurado no rosto e os pés se sentindo maravilhados em pisar naquele chão terroso e fofo. Aproximo-me então de um pequeno branco, como aqueles de praça, aonde vejo uma figura singular.

Tratava-se de um senhor, que devia estar na segunda metade de seus cinquenta anos. Trajava um terno bege de feltro, sapatos muito gastos e, sobre o colo, um chapéu escarlate de abas largas, que pendiam sobre suas pernas. Seu cabelo, que aparentava já ter sido castanho, agora era ralo no topo da cabeça, e tinha um bigode muito bem aparado e castanho como os pelos de um cavalo bem cuidado. Segurava um pão com uma mão, e, com a outra, destacava alguns pedaços do mesmo e lançava-os ao chão, onde eram muito bem recebidos por um pequeno grupo de pombos.

- Boa tarde. - Cumprimentei-o quando sentei-me ao seu lado. Ele acenou com a cabeça, demonstrando que reconhecera minha chegada. Mas não respondeu.

- Sabe - Comecei, tentando puxar assunto - nasci e fui criado nesta cidade. Aqui vi meus melhores amigos partirem para a capital em busca de trabalho. Vi inúmeros almoços de família e situações excepcionais. Mas acho que todos que já viveram por certo período de tempo aqui têm alguma história para contar que é ambientada neste mesmíssimo parque.

O senhor do chapéu escarlate levantou seus olhos, cinzentos, porém escuros e profundos, como o mar em um dia de tempestade, do chão. Virou seu rosto para mim, mas os olhos agora apontavam para o céu. Um sorriso discreto estampou, levemente, o canto de seus lábios e ele soltou uma risadinha.

- Verdade. - Concordou ele, com um suspiro. - Minha esposa adorava esse parque. Foi aqui que nos conhecemos.

Olhei para o chapéu e depois para o semblante nostálgico de meu interlocutor, e logo fiquei com os olhos marejados.

- Locais assim podem ser mágicos. - Falei, dando-lhe alguns amigáveis tapinhas nas costas. Levantei-me.

- Espero que um dia eu também tenha a sorte de vivenciar uma situação tão extraordinária em um lugar excepcional como esse.

Ele demorou alguns segundos antes de responder.

- Não é isso que todos queremos?

O Homem que Continua Correndo

Há muito tempo havia saído de casa. Talvez sequer se lembrasse da última vez que vira algum de seus parentes. Mas fazia algo que gostava muito - correr.

Corria por onde passava, e, correndo, acabava passando por novos lugares, conhecendo gente nova e se despedindo de conhecidos antigos. Esse ciclo parecia eterno. Muitas pessoas conseguiam acompanhar o homem que corria em seu percurso, mas nenhum tinha fôlego para o seguir por muito tempo. Ele eventualmente sempre acabava sozinho.

Mas não era nisso que focava. Gostava de prestar bastante atenção nos períodos em que havia alguém ao seu lado. Enquanto corriam, o homem conversava, ria e trocava culturas e experiências com seus companheiros. Ele parecia nunca se cansar.

O Homem que continua correndo, pois não se atreve a olhar para trás.