quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Diário de Bordo

Dia 4

O navio continua vagando. Tem muita neblina e o vento frio corta o caminho do barco sem piedade. O gosto salgado da maré é constante em minha boca, enquanto as gotas espessas de água do mar atingem meu rosto.

Essa embarcação me pareceu estranha desde o começo. Por mais que aparentasse ser um cruzeiro civil, com destino às ilhas caribenhas, eu duvido que tal caminho esteja sequer sendo traçado pelo barco. O convés é estranhamente deserto, e eu não me lembro da última vez que vi alguém andando em qualquer parte do imenso navio. Cruzo-o de ponta a ponta, pelo exterior e pelo interior, e tudo o que ouço, além do barulho de meus passos e do som distante das ondas ricocheteando no casco do barco, é o silêncio macabro.


Dia 12

A vida aqui é assustadora. Todos os dias, de manhã, passo pelo restaurante e a mesa do buffet está impecavelmente arrumada. Assim que termino de comer, todos os alimentos desaparecem. A mesma coisa acontece nos horários de almoço e jantar.

Embarcar nesse cruzeiro fantasma foi a pior decisão que já tomei em minha vida. Já tentei sair, pulando para fora do convés, mas no momento em que atinjo o mar, acordo estranhamente em um cômodo aleatório do barco. Facas e outras armas brancas - ou objetos que servem como estas - também não causam efeito sobre mim. Tudo o que consigo são feridas indolores, que saram rapidamente.

Eu grito inutilmente por ajuda, dia após dia. Vocifero pedidos desesperados de socorro, erguendo meus braços e balançando peças de roupa na chuva, enquanto sou encharcada por ela, os cabelos grudando no rosto. Em circunstâncias normais, eu já teria ficado doente há muito tempo. Mas as coisas aqui acontecem de um jeito estranho. O único modo que encontro de manter minha sanidade é escrever nesse pequeno caderno.


Dia 31

Cada dia que passa, me conformo de que esse navio infernal não ruma para lugar algum. Todos os dias, tudo o que vejo do trajeto percorrido são mais e mais quilômetros de um mar escuro e tempestuoso, com um céu nublado e ventanias constantes, muitas vezes regadas por doses generosas de chuva. Minha teoria é de que morri, e este é meu purgatório. Devo admitir que nunca imaginei que a vida após a morte fosse tão desgraçada assim.

Não me lembro de ter feito nada tão execrável durante minha vida para merecer esse destino. Sempre fui uma pessoa razoavelmente boa. Fui justa em vida. Uma filha dedicada, uma irmã presente e uma aluna exemplar. Era elogiada nos meus empregos. Meus parentes sempre me tratavam com carinho durante o Natal.

O que eu fiz?


Dia 58

Não acredito num deus. Ou, pelo menos, não acreditava. Em cada momento de sofrimento e angústia que passo nesse barco traiçoeiro, sinto que minha teoria de que este é meu inferno é verdadeira. Então, faço aqui, um apelo pessoal. Se algum deus, em sua onisciência e onipresença, sabe que estou aqui, peço legitimamente minhas desculpas.

Sei que fui confusa em vida, e leviana no quesito religioso. Mas faço um apelo. Nem o pior criminoso da humanidade mereceria uma punição como essa. De todas as histórias de maldições que ouvi durante minha vida, nem mesmo o fardo do cruel Tântalo é tão pesado quanto o que carrego nas costas há mais de um mês.


Dia 115

Meu cotidiano é monótono, e eu não aguento mais. Dia após dia, faço uma repetição de ações que levam o nada à lugar algum. Sinto-me presa num eterno ciclo vicioso, sem fim, e tudo isso me dá vontade de morrer. Se estou morta, afinal, tudo o que eu queria é que a vida após a morte não fosse assim.

Talvez eu tenha apenas perdido minha sanidade. Eu não sei muito bem o que é esse navio, mas pode ser muito bem uma alucinação de minha mente sádica e distorcida. Na verdade, nem sei mais o que é. E não me importo.

Pra ser sincera, tudo o que quero é que isso tenha um fim. Não quero continuar nesse navio para toda a eternidade. Espero ansiosamente pelo dia em que ele irá atracar em algum porto bendito. Fantasio a sensação de descer as escadas, e correr pelas ruas da zona portuária da cidade mais próxima. E, sobretudo, voltar para casa. Não sei como, mas quero voltar. Só sei de uma coisa: De barco, não vou.


Dia 200

Cheguei, enfim, na última folha desse caderno.

Devo dizer que foi bom enquanto durou. Durante 200 dias de minha estadia nesse navio fantasma, essa foi a única atividade do dia que eu exercia sem ódio do mundo, e, sobretudo, de mim mesma. Escrever é algo que sempre me veio muito naturalmente, e arrependo-me de, durante minha estadia na Terra, não ter seguido com ela para o lado profissional.

Não sei o que vou fazer com esse caderno depois que eu acabar de escrever a última linha. Talvez eu o jogue no mar. Talvez, após isso, ele reapareça na mesma mesa onde eu o peguei pela primeira vez, com a tinta da caneta borrada pela água, ou totalmente em branco.

O barco continua seguindo seu rumo inalcançável. Posso estar ficando louca - se é que já não estou - mas eu poderia jurar que, hoje mais cedo, vi um tímido raio de sol escapando por uma fresta entre as nuvens carregadas. Não tenho certeza. Se tem uma coisa que aprendi durante este período em alto-mar é que não tenho certeza de absolutamente nada, apenas de uma coisa: o barco continuará navegando, e eu, aparentemente, estou fardada como a tripulante solitária dessa embarcação vazia.

Adeus, caderno. Foi bom enquanto durou.

domingo, 19 de outubro de 2014

O Velho da Árvore

Em anos de treinamento como escoteiro durante minha infância, e mais um estendido período de expedições e treinamento em bosques e selvas, eu era convencido de que poderia cruzar qualquer caminho selvagem sem ficar impressionado com absolutamente nada. Ledo engano.

Era um belo dia de verão, daqueles em que o sol em pico esquenta a cabeça, fazendo o suor gotejar entre os fios de cabelo, e eu abria meu caminho em meio a uma mata virgem. Sentia os mosquitos avançando em minhas pernas, com o ânimo e a voracidade grandes como os de um homem que há muito está no deserto encontrando um oásis. Em meus braços, cortes provenientes de galhos, espinhos e pedras afiadas que cruzavam meu caminho. Os ombros doloridos de segurar minha mochila e os pés cansados depois da longa empreitada. Mas nada daquilo me abalava, pois eu já havia traçado meu objetivo, e estava determinado em alcançá-lo.

A praia do outro lado era minha meta. Era uma ilha relativamente pequena, do tamanho de um estado modesto de um país de terceiro mundo, e era consideravelmente desconhecida fora da região - caso eu me lembre bem, sequer possuía um nome. Eu estava lá simplesmente por diversão. Desde muito jovem, sempre fui um viciado em adrenalina. Depois de um tempo, montanhas russas e atrações banais já não me eram o suficiente, então, com o dinheiro que me sobrava, ano após ano, eu me metia nessas modestas aventuras em meus períodos de recesso.

Foi quando, de repente, me deparei com uma trilha, o que me causou estranheza. Eu acreditava ser pioneiro em desbravar aquela rota. O caminho rudimentar, simplesmente um espaço aberto entre a vasta gama de plantas, era tímido, mas notável. Alguém já havia estado ali antes. Claro, meus companheiros estavam na praia, me esperando, mas eles haviam chegado lá pelos aeroplanos. Decidi, então, dar ao meu facão um merecido descanso após alguns quilômetros de mato cortado e seguir pela trilha já estabelecida.

Peguei-me surpreso ao ver que, no fim da trilha, havia uma clareira. Vista de fora, a mata da ilha parecia extremamente fechada, e aquilo me embasbacou tanto quanto me agradou. Sentei em uma pedra ligeiramente menos limosa do que as demais e aproveitei para descansar um pouco. Respirei fundo, bebi uma água da garrafa que eu havia trago em minha mochila, amarrei os cadarços, que já estavam frouxos, e fiquei lá por alguns minutos, ouvindo os sons dos pássaros e observando as copas das árvores mais próximas.

Então vi algo surreal. Uma das árvores se destacava das outras, por, evidentemente, ser a maior. Tanto na altura quanto na largura. Em uma certa altura de seu tronco, havia um buraco, e dele, descia uma escada de corda. Entre a escada e o interior da árvore, havia uma pequena extensão vertical de madeira, como um chão, formando uma varanda rudimentar. E nessa varanda, estava uma figura no mínimo inusitada: Um homem aparentemente muito velho, de cabelos e barbas longos e brancos, pele morena e enrugada, sentado em uma cadeira de balanço e fumando um cachimbo.

Era difícil distinguir expressões faciais daquele rosto inédito por trás daquela espessa, mas eu pude sentir que, quando ele observou que eu havia notado sua presença, deu um sorrisinho. Não um sorriso maldoso, ou um sorriso de quem acabou de ouvir uma piada genial. Mas um sorriso travesso, como o que se vê no rosto de uma criança de 5 anos que tocou a campainha do vizinho e saiu correndo até o final da rua. Parecia estar se divertindo com o fato de que um estranho havia descoberto seu refúgio tropical e que levara um leve susto com sua presença inesperada.

- Suba, meu jovem. - Disse ele, com uma voz rouca porém jovial. - Não tenho companhia há anos. Preciso de alguém com quem eu possa colocar o papo em dia.

Eu geralmente não confiaria em velhos misteriosos que moram no meio da florestas e são estranhamente corteses, mas algo na carisma daquela figura me conquistou, e me senti inclinado a obedecer o comando solicitado logo de primeira. Enquanto eu subia pela escada de corda, ele levantou-se e entrou pelo buraco do tronco, sumindo dentro da árvore. Quando terminei a escalada, eu o segui, e me deparei com seu lar.

Dentro da árvore, havia um ambiente precário que, eu logo concluí, funcionava para aquele eremita como uma casa. Um banco de madeira forrado com algumas folhas, em um formato que lembrava uma cama, podia ser visto logo ao lado de um galho atravessado, onde estavam penduradas algumas peças de roupa esfarrapadas. Na outra parede, vindo do exterior, um pedaço de bambu cortado ao meio, com a concavidade virada para cima, trazia água da chuva para um grande recipiente, e, ao lado dele, haviam alguns menores. Também havia um outro buraco ligeiramente inclinado na vertical, o que me dava suspeitas de que, além daquilo, também havia um andar superior.

- Obrigado - Disse à figura hospitaleira, assim que entrei - senhor...

- Roosvelt. - Respondeu ele, me saudando com um vigoroso aperto de mãos.

- Baker. - Apresentei-me, em retribuição.

- Venha, suba. - Convidou ele, indo em direção ao tal buraco inclinado. - Lá em cima é mais apropriado para visitas.

Segui Roosvelt, e então minha teoria do segundo andar provou-se verdade. Não havia muito lá, apenas um rudimentar armário, onde estavam penduricados vários frascos, folhas, ervas e miçangas, e uma mesa, precária, feita de madeira, com duas cadeiras. Sentei-me, e logo o eremita juntou-se a mim, trazendo duas pequenas cuias em mãos, estas preenchidas por um líquido esverdeado.

- Chá. - Explicou ele.

- Grato. - Agradeci, tomando uma das cuias e bebendo de bom grado. Era, de fato, chá, e estava muito bom.

- O que um jovem como você faz num pedaço de terra condenado como esse, meu filho? - Perguntou meu interlocutor.

- Estou só de passagem. - Expliquei. - Sou um explorador.

- Interessante. - Murmurou o eremita.

- Vivo em Lancashire. Mas quase não paro em casa.

- Não gosta de uma vida calma, então?

- Não muito. - Admiti. - Mas tenho meus momentos.

- Ah, eu simplesmente desisti, essa sociedade maluca. A melhor coisa que fiz foi embarcar naquele navio. Lady Vain II, hah! - Zombou Roosvelt. - Frágil como um pedaço de papel. Naufragou há alguns anos atrás, e eu consegui escapar em um bote com mais uns dois. Acabamos remando até essa ilha, e eu moro aqui desde então. Os outros dois, idiotas, morreram rápido. Um teve uma infecção fatal, e o outro, comeu uma planta que não devia.

- Ninguém nunca veio investigar sobre esse naufrágio? - Indaguei.

- Ah, já devem ter vindo. Mas essa ilha é desconhecida pelo mapa. As pessoas devem achar que é inabitada. Ou, pelo menos, por humanos. Além disso, o Lady Vain encalhou longe daqui. Foram uns  bons dias de mar até chegarmos na praia. Isso já tem umas boas décadas.

- E você não tem vontade de voltar?

- Sinceramente, não sei se eu conseguiria. Já estou tão acostumado com minha vida pacata aqui, afastado de tudo. Além disso, estou velho. Vivi uma vida boa, e uma velhice excepcional. Mas agora, vamos deixar isso de lado. Me conte algumas novidades do mundo atual.

Então, passamos algum tempo discutindo amenidades. Falamos sobre a lua e os ministros, sobre o clima e os avanços tenológicos da humanidade. O assunto englobou até mesmo viagem no tempo. Por fim, vi que o sol já ia se por, e decidi encerrar minha conversa sem preliminares. Expliquei rapidamente ao divertido eremita de que eu havia há muito marcado com meus amigos de me encontrar com eles na praia e me despedi, agradecendo pelo chá e pela conversa. Ele me agradeceu igualmente, indicando o caminho mais rápido para a praia.

Após alguns minutos, eu já havia chegado ao meu destino. Dei uma última olhada para a orla, com um sorriso, e, quando questionado por meus amigos, expliquei para eles o ocorrido, no formato de anedota. Eles não me acreditaram, e inclusive mencionaram que o naufrágio da Lady Vain não havia deixado sobreviventes. Fiz pouco caso, pois estava tão feliz que não queria me estressar. Partimos naquele final de tarde, impulsionados pelo vento gelado.

Encontrar Roosvelt foi uma honra e um privilégio. De vez em quando pego-me pensando em como ele deve estar agora. Se está bem, ou mesmo vivo. Não visito aquela ilha desde então, mas alguma coisa me diz que não preciso me preocupar com ele. Ele se vira.

sábado, 4 de outubro de 2014

Criaturas estranhas

Escondo-me debaixo da cama, assustado com a situação. Meus pés estão frios como os de um defunto no Polo Sul, descalços, cansados após tanto correrem. O medo faz com que minha respiração fique mais densa, mas ainda assim, tento fazer com que esta seja silenciosa, pois não quero que ele me ache.

Estive fugindo dele por mais ou menos meia-hora. Fui pego de surpresa por sua entrada em minha casa, e, ao ouvir seus gritos, evidentemente percebi que não era uma criatura amigável e muito menos inofensiva.

Antes de entrar debaixo da cama, consegui ter um vislumbre rápido de sua aparência física. Ele era fisicamente muito superior a mim, podendo vencer-me facilmente em uma disputa corpo-a-corpo, ou até me matar, se quisesse. Sua força era demonstrada pela distância que os móveis percorriam após serem golpeados pela criatura.

Vivo sozinho, em uma casa afastada da cidade. Criaturas como esta volta e meia aparecem por aqui, coisas surreais que parecem ter saído de histórias de horror lovecraftianas. Coisas que ninguém acreditaria. Periodicamente sou visitado por esses seres violentos, mas nunca sou corajoso o suficiente para enfrentá-los, o que faz com que eu, que já tenho personalidade reclusa, seja literalmente recluso, me escondendo enquanto espero os visitantes indesejados irem embora.

Eles me visitam desde criança, na época em que morava com meus pais, em uma casa completamente diferente, em outro estado. Naquela época, muitas vezes, conseguiam me pegar. Agrediam meus pais, e, principalmente, me agrediam, fazendo menção em me matar, o que me deixava em prantos. O que me salvava, muitas vezes, era, após que meu fôlego acabasse de tanto chorar, encolher-me, prender a respiração e fingir que eu havia morrido. É impressionante quanto o medo infantil foi-me útil naqueles tempos. Infelizmente, agora, não tenho os mesmos culhões que eu tinha quando pequeno, e esconder-me ao primeiro sinal das criaturas me parece uma opção muito mais agradável.

Depois de adulto, me mudei, na esperança de que os invasores monstruosos fossem exclusividade daquela cidade. Fui para outro estado, o mais longe possível, e nos primeiros dias, tudo corria bem. Porém, depois de algum tempo, eles voltaram a aparecer.

Ouço o invasor bufar, cansado, e bater em algo que, pelo barulho que fez ao se espatifar na parede, soava muito como meu criado mudo. Seus passos pesados se afastam, pouco a pouco, até que finalmente tomo coragem para levantar-me lentamente, como um roedor alerta, e aproximar-me da janela de meu quarto. Olho para baixo e vejo a criatura ir embora, insatisfeita. Seu nariz adunco, olhos atentos como os de uma ave de rapina, e estrutura alta, porém ligeiramente curvada.

Algumas das criaturas são bem antropomórficas, como a que acaba de sair de minha casa, mas outras são tão monstruosas que chega a ser cartunescas. Lembro de uma que apresentava características lupinas, que atacara-me quando eu era bem novo.

Respiro, vitorioso, uma lufada de ar fresco. Sinto-me aliviado por ter conseguido escapar vivo, mas vivo em agonia, pois sei que, mais cedo ou mais tarde, as criaturas voltarão. Elas parecem ir gradativamente ficando mais zangadas, apesar de aparentemente menos vorazes. Fico pensando se mais alguém é ciente da existência desses invasores peculiares, e se pretende fazer alguma coisa em relação aos mesmos. Sei que terei aturar-los por mais uma vasta gama de anos. Mesmo que eu me mude novamente, sinto como se eles fossem me perseguir, para onde quer que eu vá. Mas tenho esperanças. Tenho esperanças, pois, sem elas, eu não poderei viver.

Recomponho-me, tirando a poeira das roupas, enquanto olho para a bagunça ao meu redor. Pondero se a mesma criatura retornará ou não ainda hoje. Eu realmente não sei. Mas sei que será um longo dia.