quinta-feira, 19 de março de 2015

Eles surgiram

Durante muito tempo, a humanidade ponderou sobre como seria nosso primeiro contato com vida extraterrestre. Ele não foi nada amigável.

Eles não chegaram em nosso planeta descidos de discos voadores. Na verdade, no começo, ninguém sabia como eles haviam chegado. Em um belo dia, como qualquer outro, - Uma quinta-feira, pelo que me recordo - eles simplesmente surgiram.

O exército naturalmente tentou exterminá-los, porém falhou. Balas não perfuravam a pele dos visitantes interplanetários, que era curiosa e digna de uma análise profunda. Os extraterrestres não eram nada parecidos com nada do que havíamos imaginado antes. Seu tamanho, a textura de sua pele, sua aparência física, seus membros, seus sons. Oh, os sons. Eles emitiam sons tão abomináveis que prefiro não compartilhar uma descrição para tais.

Não demorou muito para eles começarem a matar os seres humanos. Muitos se escondiam, dentro de casa ou em casamatas, mas não era o suficiente. Minha própria sobrevivência, na verdade, foi conquistada através de uma série de fatores, incluindo sorte e oportunidades pontuais. Estar no lugar certo e na hora certa foi o que salvou minha vida diversas vezes durante a série de episódios que ficou conhecida como "A Invasão".

Alguns meses depois que tudo acabou, descobriram que eles haviam chegado até nós através de um portal interdimensional. Pense como se dois cômodos fossem separados por uma fina parede, e um habitante particularmente agressivo de um dos cômodos quebrasse essa parede e invadisse o outro. Foi exatamente isso o que aconteceu. Os invasores eram provenientes de uma dimensão diferente, a qual (felizmente) nunca tivemos acesso, e não temos a mínima ideia de como seja. Esse portal fechou-se misteriosamente após a chegada dos viajantes interdimensionais, prendendo-os em nosso mundo.

A morte deles foi engraçada. As pessoas tentaram de tudo, desde artilharia pesada até água potável, para derrotá-los. E a fraqueza deles estava na mais comum das doenças humanas: a gripe comum. O vírus foi espalhado assim que isso foi descoberto, e, assim, todos eles morreram, seus cadáveres desaparecendo. Alguns dizem que estão sendo estudados pela ciência, outros, que os corpos se desmancharam em cinzas, e ainda há os que alegam que eles se teletransportaram de volta para sua dimensão natal.

Porém, infelizmente, a humanidade não teve um final feliz. Durante sua estadia em nossa dimensão, os invasores nos transmitiram uma doença. Um vírus incurável, e mortal. Depois de algumas semanas, já havia tomado o planeta inteiro. É uma morte lenta. O corpo vai se decompondo, enquanto o indivíduo ainda está vivo. Os que não morreram no ataque deles durante A Invasão, morreram graças ao vírus. E ainda há uma terceira categoria de pessoas que ainda vivem, mas vivem mortos. Os últimos humanos já tem a carne de seu corpo tão podre quanto suas mentes.

E, na morte, enquanto os cadáveres mais recentes apodrecem nas rodovias manchadas pela sujeira, os remanescentes condenados da raça humana aguardam, conformados, por seu fim. Eu sou um deles. Minha aparência física foi deformada pela doença de modo tão hediondo que não posso mais me olhar em um espelho sem ter que reter o impulso de socá-lo, dominado pela cólera. As ruas são vazias, e, de vez em quando, encontro algum outro humanoide revirando uma lata de lixo em busca de alimento. Afinal, a pior sensação do mundo deve ser morrer de barriga vazia.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Óculos escuros

Eram três da manhã em uma pequena cidade portuária que o mundo esqueceu. Em um pequeno e mal-iluminado bar, no centro da cidade, um homem por volta dos 60, 65 anos cantava Don't Stop Believin' numa máquina de karaoke.

Em uma mesinha nos fundos, um homem mais jovem assistia tudo preguiçosamente, brincando com seu copo de chá gelado.

- Just a small town girl... - Cantava o homem mais velho, a voz embriagada. Uma versão instrumental da música saia pelos auto-falantes da máquina, para ritmar a cantoria. Legendas amarelas, com letrinhas dançantes, mostravam a letra da música.

O homem da mesa ao fundo tomou um gole de seu chá gelado. (Que, nessa altura, poderia ser chamado apenas de "chá") Olhou de relance para o velho cantando. Quando seu campo de visão voltou para sua mesa, onde ele estava inicialmente sozinho, um outro homem estava sentado ao seu lado. Ele não o viu chegando ali.

O homem misterioso usava óculos escuros, apesar de ser noite e eles estarem em um ambiente interno. Para o homem do chá gelado, apenas dois tipos de pessoas usariam óculos escuros nessas condições: cegos e criminosos. O desconhecido trazia seu cabelo preto penteado cuidadosamente para trás, provavelmente com algum tipo de brilhantina, e vestia um terno preto, como qualquer assaltante clichê de filmes de assalto à banco.

- Até que ele não está tão mal. - Disse o desconhecido. - Mas você precisava ver uma moça que eu conhecia cantando Space Oddity. Isso foi na Islândia, eu acho. Ou Groelândia. Dois países que eu nunca mais pretendo visitar.

O homem do chá gelado olhou para o estranho por alguns segundos, sem saber ao certo o que fazer ou dizer.

- Eu acho que não nos conhecemos. - Disse, por fim.

- Não mesmo. - Admitiu o outro. - Nomes. Não são minha praia. Mas pode me chamar de... hm... Tom. Eu gosto de Tom. Tom soa bem. Como em "Major Tom".

E estendeu sua mão.

- Eu sou Dave. - Apresentou-se o homem do chá gelado, apertando a mão de "Tom". - Eu não quero ser mal educado, mas... o que você está fazendo na minha mesa?

Dave era um cara grande. A maioria das pessoas, de vista, diria que ele é durão, pelo fato dele ser meio parecido com gente como o Jason Statham. Mas ele, na verdade, era um cara bem pacato. E estava meio embasbacado com a situação, algo notado por Tom.

- Ah, não se importe comigo. - Falou Tom, em um tom displicente. - Eu faço isso as vezes. Entro em bares, sento na mesa de um desconhecido e converso um pouco com ele.

Dave ergueu uma sobrancelha. Uma garçonete passou pela mesa.

- Com licença. - Solicitou Tom. - Eu gostaria da cerveja mais cara da casa. E um chá gelado para o cavalheiro.

A garçonete anotou e desapareceu no bar mal iluminado.

Dave abriu a boca, erguendo o indicador.

- Não esquenta. - Falou Tom, como se pudesse ler o pensamento do outro. - Eu pago.

- Obrigado. - Murmurou Dave, que já havia desistido de discutir.

- Don't stop, believin'... hold on to that feeeeeeeling... - Cantava o velho na máquina de karaoke.

- O que você faz da vida, Dave? - Perguntou Tom.

- Eu realmente não sei se deveria confiar em você. - Admitiu Dave, sincero.

- Eu pareço o tipo de pessoa que não é confiável? - Perguntou Tom.

- Pra ser sincero, sim. - Admitiu o outro. A garçonete deixou sobre a mesa uma lata de chá gelado, um copo com gelo e uma garrafa verde de cerveja.

- Ah, o que é? O terno? Os óculos escuros? - Indagou o outro.

- Os óculos escuros. - Admitiu Dave. - Quer dizer, óculos escuros de noite? Você é cego?

- Não. - Respondeu Tom, secamente. Então, tirou os óculos escuros. Com os dedos, fechou as pernas, e pendurou-o na gola da camisa.

Dave olhou por alguns segundos. Ele havia captado a mensagem, algo que foi facilmente percebido pelo outro, que casualmente colocou os óculos escuros de volta no rosto.

- O que você faz da vida, Dave? - Perguntou Tom, novamente.

- Eu, eu... - Gaguejou ele. - Sou taxista.

Tom ergueu a sobrancelha.

- Você não deveria estar na rua?

- Eu não sou aqueles taxistas de rua. - Explicou Tom. - Eu sou, tipo, aqueles caras que a companhia chama quando tem uma família grande com muitas malas chegando de viagem. Eu dirijo um carro grande.

- Entendi. - Disse Tom. - É um bom emprego. Eu gosto de dirigir. O rádio do meu carro está com um problema, e isso é uma merda. Mas tirando isso, o veículo continua ótimo.

Dave assentiu com a cabeça, enquanto observava o velho do karaoke, que já cantava outra música: algo que se parecia com Dancing Queen, porém era difícil ter certeza. A voz do velho estava embriagada demais.

O velho tropeçou no próprio pé e caiu no chão. Alguém o arrastou para longe da máquina de karaoke, e outra pessoa eventualmente assumiu seu lugar na máquina, selecionando uma música diferente. Tratava-se de uma jovem mulher, com cabelos muito castanhos presos em um rabo de cavalo ligeiramente complicado.

Tom terminou sua cerveja. Ele puxou algo do bolso: sua carteira. De lá, puxou algumas notas de cinquenta e deixou na mesa.

- Aqui. - Disse ele. - Isso deve pagar pela cerveja e pelo chá gelado. E tem um pouco mais, eu acho. Compre alguma coisa legal.

Dito isso, levantou-se, saiu pela porta do bar e desapareceu.

Dave então reparou no refrão da música que a mulher de cabelos castanhos cantava: "I wear my sunglasses at night..."

Dave nunca mais viu Tom, e nunca mais pediu para outra pessoa tirar seus óculos escuros.