segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Eu não sonho com ovelhas

Com agradecimentos ao colega Phillip, pelo maravilhoso conceito do qual eu não bebi da fonte, mas sim mergulhei na mesma.

Peter chegara em casa após um longo dia na cidade. O céu cinzento era hostil, e as ruas também não eram amigáveis. Era uma péssima época para se viver em Los Angeles, com a lenta degradação da Terra.

Ele morava sozinho em um prédio abandonado, e lotado de tranqueiras nos quartos vazios. O prédio era pequeno e ficava em uma zona tão hostil da cidade, que nem os fugitivos se atreviam a encortiçar-se lá. Peter gostava um pouco disso. Ele encontrava um ar de serenidade da solidão. De vez em quando, falava sozinho.

Chegou no apartamento em que morava, a porta destrancada e encostada, como sempre. Tirou o casaco e jogou-o sobre uma cadeira, e chutou suas botas para debaixo da mesma. Andou em direção ao sofá, que estava logo adiante, e esparramou-se nele.

Olhou para o quadro pendurado na parede, ao lado da porta. Era a foto de uma ovelha. Ovelhas de verdade não eram vistas por ele há muito tempo. Ele não entendia o motivo das pessoas terem um deslumbre tão grande por animais de estimação, tendo-os como sonhos de consumo. Ele achava animais toscos e sem graça.

Aquele havia sido o pior dia da vida de Peter. Ele havia feito o infame Teste, para descobrir a verdade sobre si mesmo. Um daqueles malditos caçadores, que se acham tão espertos, executou o teste nele há horas atrás.

Peter não era humano, mas sim um androide. Era pra isso que servia o teste. Com ele, o caçador identificava os androides entre os humanos, e, logo após isso, os executava. E ninguém se importava. As pessoas achavam que androides eram criaturas vazias, sem sentimentos, o que não era verdade. Eles eram criados, sim, com uma mente vazia, mas ao longo de seu período de vida, eventualmente iam desenvolvendo emoções. Mas eles não consideravam isso na hora de puxar o gatilho.

Entretanto, ele havia conseguido fugir. Ele atirou primeiro. Matara o caçador antes que esse o matasse. Depois disso, fugiu. Voltou para casa, e sabia que eles iriam procurá-lo lá. Mas ele não ligava. Na verdade, não queria mais viver. Porém não queria ser morto por um rato armado sujo que lucraria monetariamente com sua morte.

Um novo caçador já estava entrando no prédio para por um fim em Peter. Ele sabia que o caçador estava lá. Podia ouvir seus passos ocos ecoando no piso do prédio.

O caçador, de repente, percebeu como o silêncio do lugar o deixava desconfortável. Foi o último pensamento que lhe passou pela mente antes dele ter sua cabeça separada do corpo por um pedaço de entulho que voou em sua garganta durante a misteriosa e inusitada explosão.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Sobre computadores e a biblioteca de Alexandria

Durante boa parte de minha juventude, interessei-me por contos. Fossem pequenas estórias escritas durante o período vitoriano, fossem trechos atuais publicados em jornais locais, sendo curto o suficiente para eu ler durante viagens de ônibus, já me despertava o interesse. O curioso de contos, porém, é que eles são, estranhamente, como bombons. Apenas um nunca é o suficiente. E isso me levava a recorrer à livros de compilações. Eu certamente mantinha uma preferência por comprar tais livros, e tê-los sempre em minha prateleira para eventuais saudades de textos específicos, porém eu infelizmente não dispunha sempre do orçamento necessário para sustentar esse meu pequeno vício literário, então muitas vezes recorria à biblioteca local.

Estava retornando lá para devolver um livro que continha diversos contos narrando as proezas de Sherlock Holmes, entre eles, dois de meus favoritos - O Intérprete Grego e A Face Amarela. Sendo frequentador assíduo da biblioteca, eu já conhecia bem a pequena variedade de funcionários do lugar - uma mulher de nariz fino e percepção afiada que trajava sempre um impecável paletó azul marinho, uma senhora gentil com olhos lindos e uma personalidade afável, e um rapaz muito magro e pálido, que parecia estar sempre com a cabeça nas nuvens. Porém, para minha surpresa, ao dirigir-me ao balcão, encontrei uma pessoa diferente.

Era uma moça muito jovem, de cabelos loiros presos num coque apertado e olhos muito atentos no computador do balcão. Presumi que havia sido contratada alguns dias antes, pois eu não a havia visto em minha visita anterior. Devo admitir que sou péssimo em interagir com pessoas desconhecidas, mas eu precisaria devolver o livro mais cedo ou mais tarde, e ela não parecia muito apressada em ceder seu posto para algum outro bibliotecário; Então, aproximei-me.

- Boa tarde. - Saudei, em um tom de voz neutro.

- Boa tarde. - Ela respondeu, ainda sem tirar os olhos do monitor, os dedos teclando rapidamente e tornando o barulho das teclas o único ruído audível no ambiente além de nosso tímido diálogo.

Fiquei alguns segundos em silêncio, pensando no que dizer em seguida, quando, de repente, ela parou de digitar e olhou em minha direção.

- Oh. Veio alugar este livro? - Perguntou.

- Devolver. - Corrigi.

- Certo. - Murmurou.

Estendi a mão com o livro e ela o tomou. Pegou então um aparelho que estava ao lado do computador e, com ele, escaneou um código de barras que estava na contracapa.

- Um momento... - Disse, voltando a teclar freneticamente, quando, de repente, parou e franziu o cenho.

Deu alguns cliques impacientes no mouse do computador, até que desistiu, suspirou com um ar zangado e reclinou-se em sua cadeira, levando a mão ao rosto.

- Desculpe por isso. Mas essa máquina execrável - Reclamou, dando uma pancada no estabilizador, que produziu um ruído surdo - não está funcionando direito.

- Não me admira. - Comentei, após um murmúrio bem humorado. - Isso aí é um dinossauro. Frequento essa biblioteca há uns dez anos, e, da primeira vez que vim aqui, esse computador já era obsoleto.

- Preciso me acostumar com essa coisa. - Falou ela. - Eles costumavam ter sistemas operacionais mais rápidos no meu antigo emprego.

- Ah, você vai pegar o jeito. - Encorajei-a. - Tem um rapaz que trabalha aqui que também teve essa mesma dificuldade quando entrou, mas pelo jeito agora já está habituado.

- Sinceramente, não sei como ele consegue.

- Segundo ele, funciona bem no geral. Mas as redes sociais estão bloqueadas.

- Ótimo. - Resmungou, ironicamente, e depois olhou de relance para o monitor e exibiu um ar de surpresa.

- Voltou? - Indaguei, curioso.

- Voltou. - Confirmou ela.

- Vamos tentar de novo? - Perguntei.

Agora já mais bem humorada, ela escaneou novamente o código de barras e voltou para a sua rápida e complexa sequência de datilografia. Após alguns segundos, ocupados por ela com um tamborilar de dedos na mesa, a pequena impressora que se localizava no balcão lançou para fora uma pequena nota fiscal amarelada, que foi recebida por nós dois com sorrisos. O meu era neutro, quase que automático, mas o dela exibia uma alegria genuína de vitória.

A bibliotecária rapidamente alcançou uma caneta esferográfica, e, após girá-la astutamente entre os dedos de sua mão esquerda, assinou dois pedaços da nota com uma rubrica, e entregou-a para mim, para que eu fizesse o mesmo. Após eu fazê-lo, ela cortou a nota em duas com um movimento singular de tesoura, guardou um pedaço em um pequeno arquivo que ficava do outro lado do balcão  entregou o outro a mim.

- Obrigado. - Agradeci.

- Não há de que. - Respondeu ela.

Chequei meu relógio de pulso. Eu ainda dispunha de uma vasta gama de tempo em minhas mãos. Então, girei nos calcanhares e virei-me para as fileiras de prateleiras. Encarei-as por alguns segundos, batucando os pés no chão e pensando no que eu faria em seguida. Então, virei-me novamente para o balcão e perguntei para a moça:

- Vocês adicionaram algo novo na sessão de contos ultimamente?

- Para ser sincera, não tenho certeza - Disse ela, erguendo uma sobrancelha. - Trabalho aqui há apenas alguns dias, mas, até onde sei, não.

Suspirei, desapontado.

- Eles não atualizam essa sessão há meses. Já estou relendo meus favoritos desde que me lembro bem e isso realmente está começando a ficar cansativo.

- A variedade realmente não é das maiores - Concordou ela. - Isso aqui não é exatamente a biblioteca de Alexandria.

- É, creio que não. - Murmurei, olhando de relance para as prateleiras. - Os papéis não ficam disponibilizados em rolos encaixotados e eu espero que esse lugar não tenha um final semelhante.

Meu comentário foi recebido com uma gargalhada audível.

- Oh, desculpe. - Murmurou ela. - As vezes eu esqueço que não se deve fazer barulho numa biblioteca.

- Não se preocupe com isso. Esse lugar anda tão deserto, que, tirando os bibliotecários, só me lembro de ter visto três pessoas aqui no último mês. E uma delas sou eu.

- As coisas vão indo mal. As pessoas não alugam mais livros.

- Verdade. Mas não sei se é porquê estão deixando de ler, ou se estão baixando-os por leitores virtuais ou computador.

- Acho que um pouco dos dois. Mas leitores virtuais apresentam tanta ameaça aos livros de papel quanto elevadores apresentam às escadas.

- Justo. - Concordei. - Gosto desse lugar. Tem um ar de serenidade. E segurança. Acho que me afeiçoei muito à esse prédio. Passei a maior parte de minha adolescência aqui, sabe. Deus, esse lugar costumava a abranger uma tremenda barulheira. A bibliotecária mais antiga daqui arrancava os cabelos, indo de mesa em mesa e pedindo para as pessoas fazerem silêncio.

- Quem olha isso agora, nem acredita. - Disse ela.

- É... - Murmurei, pensativo. - Espero que esse lugar não feche tão cedo.

- Provavelmente não irá. É mantido pelo governo, ou algo assim. Eles só fecharão caso precisem de mais dinheiro para "reformar as ruas" ou  "ajudar a população".

- Ou comprar um carro novo e reformar um banheiro.

Meu comentário foi respondido por um risinho irônico.

- Bem, obrigado pela ajuda. - Falei, dirigindo-me à porta de saída.

- Volte sempre. - Respondeu ela, olhos novamente focados no computador.

- Eu sempre volto. - Disse, olhando para o teto e tamborilando os dedos na porta por um segundo, antes de sair.

Gosto muito daquela biblioteca. Claro que sua atmosfera não é metade do que foi antigamente, vívida em seus anos dourados, mas há algo reconfortante em saber que existe um lugar sólido e confiável, esperando por você, no mesmo lugar da cidade, todos os dias.